sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Origem e História do Cânon Hebraico

Nome e Conceito Tradicional 

1 O cânon; livros deuterocanônicos e não-canônicos.

O AT é mais do que um simples ajuntamento dos livros isolados cujo processo de formação acabamos de discutir. Em seu conjunto, o AT deve ser caracterizado com o termo "cânon". Por isso é necessário seguir o desenrolar do processo de formação desse conjunto e indagar de que modo surgiu o cânon do AT enquanto Escritura Sagrada, tendo-se presente os fatos e os temas essenciais.

A palavra "cânon", que se acha vinculada ao termo semítico qaneh, "cana" e tem no grego o sentido análogo de "vara linheira", foi empregada na filosofia grega com a significação transposta de "fio condutor, regra, norma", conservando este mesmo sentido em Fílon, no NT (Gl 6,16; 2Cor 10, o conceito foi aplicado à Bíblia pelo Concílio de Laodicéia (360) e por Atanásio (De decretis Nicaenae synodi 18,3) para indicar o seu caráter de portadora das verdades de fé para a pregação da Igreja. Foi a Igreja latina que fez a identificação entre cânon e Bíblia. Assim, do ponto de vista do conteúdo, o conceito se aplica à Bíblia em geral ou apenas ao AT, enquanto se fundamenta na revelação divina e oferece a regra e a norma de fé e de vida; do ponto de vista formal, esse mesmo conceito indica a lista ou o catálogo daquele escritos que devem fazer parte da Bíblia. Antes, porém, de o conceito de cânon ter sido adotado, existiram outras expressões que correspondem pelo menos ao ponto de vista do conteúdo: Sagrada(s) Escritura(s), utilizada no NT, na Mishna, em Fílon e Josefo, para indicar o AT, ou também as palavras: que tornam impuras as mãos que ocorrem na Mishna Jadaiim 3,5, indicando o efeito que o material sagrado dos livros canônicos produzia sobre aqueles que os tocavam. Estritamente falando, o conceito de cânon exclui também a introdução de mudanças no texto. Contudo, ele foi usado, sob este aspecto, como também sob o ponto de vista do conteúdo, praticamente quase sempre de modo muito pouco consistente, de sorte que é de bom alvitre não urgir o conceito.

O cânon do AT hebraico, que se impôs de modo geral, embora não totalmente, se compõe de três partes: a Lei, os Profetas e os Hagiógrafos. Desde o século VIII d..C., a segunda parte foi subdividida em "Primeiros Profetas" (Js-2Rs) e "Profetas Posteriores" (livros proféticos), não se sabendo ao certo se estas expressões indicam, em sentido temporal, a época de seu aparecimento ou, em sentido espacial, o lugar que os mesmos ocupam no cânon. Os livros religiosos mais antigos que não foram recebidos no cânon costumam ser designados, em parte, como apócrifos e, em parte, como pseudo-epígrafos.Mas estas expressões não são muito claras e foram superadas pelos escritos descobertos em Qumran, os quais na sua maioria não se enquadram neste esquema. O mais correto seria chamar os referidos livros respectivamente de deuterocanônicos e não-canônicos.

A expressão "apócrifos", que se tornou usual desde Karstadt (1520) para designar os livros deuterocanônicos, considerando-os como "secretos, ocultos", como tendo sido escritos por outros autores que não os tradicionalmente admitidos, ou como sendo de conteúdo de tal modo difícil, e torná-los acessíveis apenas aos iniciados. Com relação aos apócrifos do Antigo Testamento a expressão significava originalmente que eles deviam ser excluídos do uso público, tal como se fazia também no judaísmo helenístico, sem que, por isso, devessem ser excluídos igualmente do cânon. De fato, na Bíblia grega e latina eles foram atribuídos ao AT em sentido mais amplo. Trata-se dos seguintes: 3 Esdras, 1-3 Macabeus, Tobias, Judite, a oração de Manassés, certos acréscimos ao livro de Daniel, acréscimos ao livro de Ester; Baruc, a carta de Jeremias; Eclesiástico (Jesus Sirac), Sabedoria de Salomão. Além do 4 Macabeus (Codex Alexandrinus) e 4 Esdras (Vulgata), certas comunidades da Igreja oriental atribuíram esta dignidade a outros livros. Contudo, a designação de "deuterocanônicos" se restringe praticamente ao grupo mencionado em primeiro lugar. Esses escritos foram assumidos do AT grego pelas Igrejas, no todo ou em parte, como livros de edificação e como uma espécie de apêndice ao cânon, e, segundo a definição de Lutero, não podem ser equiparados aos livros canônicos, embora possam ser lidos como bastante proveito.

O nome de "pseudo-epígrafo" para designar os livros religiosos não-canônicos também não é feliz porque significa que tais livros circulam sob o nome de um suposto e falso autor e que, portanto, são pseudônimos. Mas isto não se aplica a todos os pseudo-epígrafos, dos quais alguns são anônimos, aplicando-se, ao invés, a determinados livros canônicos e deuterocanônicos, como, p. ex., o Cântico dos Cânticos, Daniel, Baruc, a carta de Jeremias. Não é possível oferecer uma visão global dos livros não-canônicos, sobretudo porque uma parte deles só foi conservada em fragmentos ou só se conhece pelo título. Comumente entre os não-canônicos contam-se os seguintes: cartas de Aristéias, Livro dos Jubileus, Martírio e Ascensão de Isaías, Salmos de Salomão, Odes de Salomão, 4 Macabeus, Livros Sibilinos, versão etíope e eslava do Livro de Henoc, Assunção de Moisés, 4 Esdras, Apocalipse sírio e grego de Baruc, Testemunhos dos Doze Patriarcas, Vida e Adão e Eva. Ao que se acrescentam os documentos de Qumran: Rolo da Seita, Documento de Damasco, Rolo da Guerra, Rolo dos Cânticos de Ação de Graças e outros.

2. Conceito Tradicional. - O conceito tradicional a respeito da origem do cânon, dominante até o século XVIII, surge pela primeira vez em Josefo, C. Ap. (cerca de 95 d.C.), onde ele diz que os judeus possuem vinte e dois livros fidedignos, em seu estado primitivo (o autor junta Rute com Juízes, e Lamentações com Jeremias), os quais apresentam as seguintes características: a) provêm de homens inspirados que viveram no período que se estende de Moisés até Artaxerxes I (465-424 a.C.); b) distinguem-se da literatura profana pelo caráter sagrado de seu material; c) são numericamente limitados; d) não se pode tocar no seu conteúdo. Segundo 4Esd 14,18-48 (cerca de 100 d.C.) o cânon foi criado por Esdras, e é datado da época do exílio: durante quarenta dias ele ditou, de novo, a seus cinco auxiliares os livros sagrados que haviam sido destruídos por ocasião da queda de Jerusalém.Eles escreveram então vinte e quatro livros canônicos ¹, e mais outros setenta (apocalipses) destinados apenas aos sábios. Elias Levita deu a eta opinião, aceita pelo cristianismo no século II, uma nova forma (1538), que foi decisiva para as épocas posteriores: os vinte e quatro livros do AT já existiam no tempo de Esdras, mas este e os homens da "grande sinagoga" os reuniram e os dividiram nas três parte do cânon hebraico, pondo em ordem certos detalhes no interior de cada uma destas partes.

Na realidade, esta e outras concepções semelhantes são inexatas e insustentáveis. Alguns livros do AT são posteriores à época de Esdras e por isso ele ainda não os podia conhecer (Crônicas, Eclesiastes, Daniel e outros). Também a colocação de Crônicas, Esdras e Neemias, como também a de Daniel na terceira parte e não na primeira ou na segunda seria inconcebível. Contra a tradição levantam-se também as variantes do cânon samaritano e da versão dos LXX (Septuaginta). Por fim, também nunca existiu uma "grande sinagoga" no sentido que lhe dá o Talmude. O aparecimento do cânon constitui antes um longo processo histórico no qual se pode distinguir três estágios: a tradição oral, resultante da revelação como seu pressuposto; o trabalho de compilação dos escritos sagrados como uma espécie de pré-história; e a formação propriamente dita do cânon.

Origem do Cânon Hebraico

1. Pressuposto - O pressuposto para um cânon das Sagradas Escrituras consiste na antiga crença de que a revelação divina se expressa na palavra humana e por isso determinadas palavras humanas representam a palavra de Deus, podendo reivindicar para si uma autoridade divina e possuir valor normativo. Isto vale para a instrução ministrada pelo sacerdote (tôrâ), a palavra de ordem ou de proibição da regra de vida (dabar), a determinação do legislador e do juiz (mišpat), o oráculo do profeta (dabar), o cântico do cantor (šîr) e a sentença do sábio (mašal). Todas estas palavras são atribuídas à inspiração divina, embora a eficácia desta se considere menos presente no cântico e na sentença. Trata-se sobretudo de palavra proclamadas oralmente, destinadas à própria época e que com freqüência caíram logo depois no esquecimento. Muita delas, porém, adquiriram validez permanente e foram conservadas oralmente e por escrito, e, juntamente com outras, foram reunidas em coleções e em livros e consideradas como escritos de caráter sagrado e normativos para a vida.

É deste modo que as três primeiras manifestações acima mencionadas - a instrução, a palavra e a decisão - começam paulatinamente a forma a Lei (tôrâ) em sentido mais estrito. Através de anotações a respeito de sua origem e, por conseguinte, a respeito de sua santidade, recomenda-se que os elementos desta Lei sejam cuidadosamente observados e transmitidos: os decálogos foram escritos sob o ditado de Javé ou por ele pessoalmente (Ex 24,12;31,18;32,15s;34,28). As determinações legais (Ex 21,2 2-22,16) deviam ser propostas à aceitação do povo por intermédio de Moisés (21,1). A lei deuteronômica deve ser abreviada ou ampliada e depositada em um lugar sagrado (Dt 4,2;13,1;31,26). Isto, porém, não significa ainda nenhuma compilação dos escritos sagrados e muito menos ainda uma canonização, porque novas coleções de leis entraram em vigor até à lei da Santidade e ao Documento Sacerdotal. É somente com a forma de Esdras, a qual estabilizou a Lei, que se encerra o período do aparecimento de qualquer nova lei de autoridade divina.

Os oráculos proféticos, cuja comunicação se fez, apelando-se, com muita frequência, expressamente para autoridade divina, valem em primeiro lugar, evidentemente, para o seu tempo. Como, porém, só raras vezes se cumpria, em vida de um profeta, aquilo que ele anunciara, esses oráculos foram consignados por escrito, a fim de que pudessem conservar-se em vigor - pouco importando que ele contenham muita coisa que pode valer para além do momento transitório, como palavra divina reguladora da vida. Os próprios profetas escatológicos já supõem semelhante valor, quando, conscientes de sua condições de epígonos, se reportam aos profetas mais antigos (Is 48,3; Zc 1,4;7,7). Finalmente, quando na época tardia do pós-exílio, começa a se duvidar da profecia contemporânea (Zc 13,1-6), a corrente apocalíptica erudita se utiliza dos oráculos dos profetas antigos para seus cálculos sobre o futuro.

O cântico e a sentença podem também ser considerados muitas vezes como palavras possuidoras de um saber de eficácia, como nos mostra, sobretudo, a pesquisa dos gêneros literários. Além disso, os cânticos culturais foram transmitidos e utilizados durante séculos, revestindo-se assim de uma áurea de respeitabilidade devida à sua antiga idade. O fato, porém, de se ficar limitado, afinal, às tradições de um determinado período e de não mais se reconhecerem manifestações mais recentes, se deve à adaptação da Lei e dos oráculos proféticos às circunstâncias do tempo.

Os motivos para a transmissão e para a compilação das palavras humanas tidas como palavra divina foram, no particular, vários e mutáveis. Muitas vezes a razão se encontra no antigo conceito de força mágica atribuída à palavra escrita (Nm 5,11ss). Sobretudo é deste modo que os oráculos proféticos foram transmitidos, para conservarem a força da palavra falada de Javé e talvez também para aumentar esta força, a fim de que a vontade divina expressa nessas palavras se realizasse no futuro. É desta raiz que provém, por fim, a idéia de santidade material de tais escritos. Paralelamente a isto entra em ação uma idéia pessoal, quando se reproduzem ou se apreciam as palavras ditadas por Javé ou registradas pessoalmente. Um dos pontos de vista que teve também o seu papel no caso dos profetas foi o desejo de encontrar, ao menos junto à posteridade, depois da realização daquilo que eles predisseram, o reconhecimento que lhes fora negado em vida. Além disso, as narrativas que vão da época dos patriarcas até à conquista do país foram transmitidas porque serviam de fundamento à pretensão jurídica e religiosa a respeito da terra de cultura. Posteriormente os motivos cultuais exerceram um determinado papel, principalmente no que diz respeito aos cânticos cultuais, embora o culto em si não funcione nunca como o "Sitz im Leben" (contexto vital) propriamente dito para o AT enquanto Escritura Sagrada. De fato, na época anterior ao exílio, e depois do exílio também durante bastante tempo, o culto israelítico foi predominantemente um culto sacrifical e não um serviço da palavra de Deus, serviço este que só veio a existir em maior escala ao lado do culto sacrifical, depois que começou a funcionar o serviço divino da sinagoga durante o exílio. O verdadeiro motivo para a transmissão da palavra divina e para a formação progressiva do AT enquanto coleção de escritos sagrados e como cânon foi a preocupação em possibilitar e assegurar um amplo ordenamento para a vida com base na manifestação da vontade divina.

2. Pré-história. - A pré-história do cânon em sentido estrito é constituída pelo trabalho de compilação de escritos sagrados. Para o Pentateuco esta atividade começou com a colheita dos antigos "estratos fontes" que continham também as coleções de leis e de normas de vida. De importância maior foi o impulso dado pela reforma de Josias, com a introdução da lei deuteronômica como norma obrigatória para a organização de toda a vida, de sorte que em época subseqüente o Deuteronômio veio simplesmente a se tornar a primeira Sagrada Escritura. O surgimento posterior de outros complexos de narrativas e de leis até se chegar ao Código Sacerdotal teve seu coroamento com a introdução, feita por Esdras, do Pentateuco, acrescido do Código Sacerdotal, como base e norma para a comunidade de Jerusalém. O que decidiu, mais uma vez, não foram razões de ordem cultual mas o desejo de regular toda a vida. A partir de então, todo o Pentateuco - a tôrâ, a "Lei" - foi considerado como Sagrada Escritura, que os samaritanos conservaram, por esta mesma razão, ao se separarem de Jerusalém, e que o judaísmo traduziu, inicialmente sozinho, para o grego, tendo sua designação como Lei sido utilizada, inclusive por Jo 10,34;15,25, para indicar todo o AT.Evidentemente que isto não implicava, de imediato, a sua canonicidade, porque a extensão e o texto ainda não tinham sido definitivamente fixados; antes, ainda era possível introduzir ampliações e mudanças, como nos mostra uma comparação entre o texto massorético e a versão dos LXX (Septuaginta).

O trabalho de compilação dos "Primeiros" Profetas e dos Profetas "Posteriores" se fez simultaneamente com o da "Lei", também, em última análise, pelos mesmos motivos. Mas os livros de Josué-2Rs, dos quais o livro de Josué chegou mesmo a formar originalmente uma unidade com o Pentateuco, dão prosseguimento à narrativa mais antiga sobre a história de Israel e de suas relações com Javé, enquanto os profetas interpretam tudo isto por meio da própria palavra. Através disso tudo, os livros proporcionam indícios diretos ou indiretos para a organização de uma vida em conformidade com a vontade de Deus. Entretanto, é somente o trabalho de compilação dos "Primeiros" Profetas que se deve aos mesmos círculos que recolheram a "Lei". A maneira como estão divididas as coleções e os livros proféticos, e também a consideração particularmente acentuada com respeito à profecia escatológica nos permitem presumir que os Profetas "Posteriores" foram compilados por círculos escatológicos, com finalidade de contraporem à piedade legalista não-escatológica um conjunto de Escrituras Sagradas que harmonizassem a observância da Lei com expectativa escatológica. Como a obra cronística, e muito particularmente Daniel, já não tiveram acolhida nessa conjunto, eles eram considerados, em fins do século IV, como coleções autônomas quanto ao essencial. Quando Jesus Sirac, por volta de 190 a.C., menciona os profetas Isaías, Jeremias, Ezequiel e os Doze Profetas (Eclo 48,22ss), tal fato corresponde à referida situação. Evidentemente a coleção ainda não tinha caráter canônico. Isto é o que se deduz, seja das diferenças, por vezes notáveis, que se observam entre o texto e o texto grego dos LXX nos livros de Samuel-Reis,seja a partir do modo como as Crônicas consideram a história, seja ainda a partir do fato de novos textos terem sido incluídos nos livros proféticos já existentes (p. ex. Zc 12-14).

O trabalho de compilação dos livros do terceiro grupo, ou dos "Escritos" [Hagiógrafos] - no sentido de "os demais escritos" ou "os que foram somente escritos", não se destinando à leitura no serviço divino - estava apenas em andamento quando as outras duas coleções se completaram, e se protraiu por longo tempo. Afora a Lei e os Profetas, o neto de Sirac menciona, por volta de 117 a.C., somente os outros "Escritos transmitidos pelos pais". Em De vita contemplativa § 25, em meados do século I, Fílon fala em "Salmos e outros escritos", e Lc 24,24 menciona simplesmente "os Salmos". Segundo 2Mc 2,13ss (século I a.C.), Neemias teria compilado um saltério e a correspondência com os soberanos persas, além de certos livros históricos e dos profetas, e Judas Macabeu teria organizado, por seu lado, uma vasta coleção de escritos dos antepassados, subentendendo-se, com isto, os "Escritos" [Hagiógrafos]. Que este grupo de escritos já não tenha exercido nenhum papel de importância é o que nos mostra a expressão: a Lei e os Profetas, utilizada em Mt 5,17; At 28,23 para designar o AT todo inteiro. Somente aos poucos é que o terceiro grupo foi encontrando aceitação, incluindo-se nele, inicialmente de forma pouco consistente, aqueles livros que mereciam tal distinção. Dentre estes escritos, parece que o Saltério foi o primeiro a ser considerado como Escritura Sagrada, fato este compreensível, em se tratando desta coleção de cânticos. Coisa semelhante se passa com as Lamentações, pelo fato de serem utilizadas nas solenidades comemorativas da destruição de Jerusalém, e por serem atribuídas a Jeremias, e também com o livro de Ester, utilizado como rolo festivo na solenidade dos Purim. A literatura sapiencial podia apelar para a inspiração divina. Além disso, os Provérbios e o Eclesiástico são atribuídos a Salomão, o mesmo acontecendo com o Cântico dos Cânticos, ao passo que Rute, em sua última recensão, fala dos antepassados de Davi, e sua história transcorre na época dos Juízes. Também para Daniel deve ter sido determinante o fato de ser atribuído a uma época situada no período da revelação, ou seja, na época do exílio. Da história cronística, Esdras e Neemias foram os primeiros a serem admitidos, por causa de sua ligação com a Lei e o culto; seguiram-se, mais tarde, os livros das Crônicas, inicialmente separados dos mesmos. De Mt 23,25, contudo, não se pode deduzir que isto era reconhecido na época do Novo Testamento. A seleção definitiva e mais ainda a distribuição dos livros do terceiro grupo só foram estabelecidas na época posterior ao aparecimento do cristianismo.

3. Formação do cânon hebraico. - Até à época de Sirac e de seu neto, respectivamente por volta de 190 e 117 a.C., ainda não se havia chegado à formação do cânon hebraico em sentido propriamente dito. Por volta de 117 existia somente uma série de escritos sagrados, uma parte dos quais fora reunida em duas coleções, mas continuava exposta ainda a possíveis alterações. Uma terceira coleção se achava em vias de formação, não estando ainda fixados o tamanho e a denominação. Mas em Josefo e em 4Esd, por volta de 100 d.C., o conceito de cânon já se encontra definido. Também o número dos escritos canônicos está definitivamente estabelecido. O encerramento do cânon se deu, portanto, entre os anos 100 a.C. e 100 d.C., e o chamado Sínodo de Jâmnia (Jabne), cerca de 20 km ao sul de Jafa, parece ter contribuído de algum modo para isto. Divergências posteriores a respeito de livros em particular em nada alteraram o cânon.

A formação do cânon foi o resultado de uma decisão dogmática que fixou o conjunto das Sagradas Escrituras, determinando-lhe o número e os limites, razão pela qual se postulava um período bem definido da revelação (de Moisés até Artaxerxes I). As razões para esta decisão se ligaram à situação histórica. Em uma determinada época floresceu o chamado movimento apocalíptico com a pretensão de possuir o dom da inspiração e por este modo misturava, de novo, idéias de crenças estranhas com as próprias, fazendo assim reviver, mais uma vez, o perigo do sincretismo religioso. Seus escritos deviam suplantar a própria Lei, sendo, por isso, atribuídos a personalidade que viveram antes de Moisés (Adão, Henoc, Noé, os patriarcas), de modo a parecerem mais antigos do que a Lei de Moisés. Igualmente perigosos devem ter sido considerados os escritos de outros grupos e correntes, como os de Qumram, em cuja comunidade se utilizava inclusive a literatura deuterocanônica e não-canônica, não se limitando a um determinado cânon. Mas era sobretudo a força missionário do cristianismo primitivo que se fazia sentir ameaçadora, principalmente pelo fato de haver adotado a tradução grega dos LXX, pondo-a em concorrência com as Escrituras hebraicas. Em face do perigo de um esvaziamento interno e de uma desagregação no exterior para o judaísmo fiel à Lei, a corrente dos fariseus definiu e impôs o conceito de cânon, apesar da resistência dos saduceus que só reconheciam como livro normativo a Torah. Esta corrente distinguia rigorosamente entre literatura sagrada e literatura profana, incluindo na primeira os vinte e quatro escritos que pareciam corresponder às quatro notas apontadas por Josefo (§ 75,2). Pode-se considerar o cânon como terminado por volta do ano 100 d.C.

4. Divisão. - O neto de Jesus de Sirac encontrou a divisão do cânon hebraico já estabelecida no que respeita às duas primeiras partes, e encaminhada, com relação à terceira parte. O resultado final se apresenta como segue:

a) A Lei compreende o Pentateuco com os nomes e a ordem de cada livro já prefixados.

b) Os Profetas, subdivididos em duas partes somente no século VIII d.C., compreendem inicialmente os livros históricos, cuja ordem de colocação foi logo determinada em sentido cronológico: Josué, Juízes, livros de Samuel e Reis. Rute esteve temporariamente unido a Juízes. A ordem de colocação dos livros proféticos oscila, pois no texto massorético a distribuição é a seguinte: Isaías, Jeremias, Ezequiel e os Doze Profetas, enquanto o Talmude babilônico Baba Batra 14b ordena os três primeiros destes, com relação à diáspora oriental, desta maneira: Jeremias, Ezequias e Isaías. As Lamentações estiveram unidas durante algum tempo com Jeremias.

c) Os Escritos [Hagiógrafos] foram distribuídos de muitas e variadas formas: no começo se encontram frequentemente os Salmos, Jó e Provérbios, ou os Salmos, Provérbios e Jó, e no fim a obra cronística. Além disto, os cinco Megillot, ou rolos destinados a serem lidos nas principais festas do ano, foram agrupados desde o século VI d.C. e colocados na seguinte ordem, desde o século XII:

Cântico dos Cânticos, para a Páscoa 

Rute, para a festa das semanas ou festa da colheita 

Lamentações, para a celebração do jejum, me memória da destruição de Jerusalém 

Eclesiastes, para a festa dos Tabernáculos [festa das cabanas de folhagem] 

Ester, para a festa dos Purim 

Notas

1 O número de vinte e quatro livros, em lugar dos tradicionais trinta e nove, provém do fato de que Sm, Rs, o Dodekapropheton e a obra cronística eram contado como constituindo cada grupo um só livro em si.

2 Outras formas do Cânon

2.1 Samaritanos. - Nos primeiros tempos do período helenístico, quando o centro de gravidade do judaísmo palestinense se situava na Judéia, e particularmente em Jerusalém, os seguidores da fé javista que residiam na região central do outrora Reino setentrional de Israel, chamado Samaria depois da divisão pelos assírios em províncias, separaram-se do judaísmo de Jerusalém e formaram uma comunidade própria, a comunidade dos samaritanos, com o seu centro cultual no monte Garizim perto de Siquém. O cânon desta comunidade contém apenas os cinco livros da Torah. De caráter não canônico é uma exposição histórica, que vai de Josué até à Idade Média, passando pelo período dos imperadores romanos, e se encontra no Sefer ha-Jamim, que para o período bíblico, traz parte consideráveis dos livros históricos do AT em uma recensão própria. É sobre esta exposição, a qual em breve será publicada, que se baseia o chamado livro de Josué. Um outro livro não-canônico importante é a versão samaritana da história de Moisés, que se encontra na "Doutrina de Marqā" (Memar Marqā), que apareceu nos primeiros séculos do cristianismo ¹.

2. Judaísmo Helenístico. - O cânon do judaísmo helenístico, ou cânon alexandrino da versão dos LXX, teve formação semelhante ao dos samaritanos, e no fundo corresponde também à concepção dos saduceus, encarnando com certeza uma tradição judaica mais antiga. Neste cânon só a Torah possui valor canônico e assume um lugar diferente que transcende a tudo o mais. Os outros escritos não receberam nenhum valor canônico, mas eram estimados e lidos como livros de edificação. O resultado disto é que eles foram distribuídos segundo pontos de vista que diferem daqueles que se observam no cânon hebraico e que também outros escritos excluídos deste cânon puderam ser admitidos e equiparados aos demais. Observa-se aí a seguinte distribuição:

a) Torah (Pentateuco);

b) livros históricos: de Josué até Reis, incluindo-se Rute, Crônicas, Esdras, Neemias, Ester;

c) livros poéticos e didáticos: Salmos, Provérbios, Eclesiastes, Cântico dos Cânticos, Jó;

d) livros proféticos: Oséias, Amós, Miquéias, Joel, Abdias, Jonas e os seis livros seguintes como no texto massorético, e depois: Isaías, Jeremias, Lamentações, Ezequiel, Daniel.

Nos grupos b-d foram inseridos outros escritos deuterocanônicos e não-canônicos, onde os manuscritos e as edições dos LXX divergem entre si.

3. Cristianismo. - O cristianismo mais antigo inicialmente não aceitou a nascente teoria dos fariseus a respeito do cânon e não se prendeu a nenhum cânon formalmente delimitado. É isto o que se deduz das passagens extraídas de livros não-canônicos e citadas com a mesma fórmula usada os escritos canônicos (1Cor 2,9, e também Lc 11,49; Jo 7,38; Ef 5,14; Tg 4,5s; Jd 14s). A oposição fae ao judaísmo e a disseminação do cristianismo no âmbito do Mediterrâneo fizeram com que fosse utilizada a versão grega do AT e se partisse menos do cânon hebraico do que da compilação alexandrina, que foi por isso abandonada pelo judaísmo e adotada pela Igreja. É evidente que, logo depois, a teoria dos fariseus a respeito do cânon também exerceu sua influência no cristianismo, de sorte que, no fim, surgiu uma mistura das duas concepções.

A Igreja grega distingue teoricamente entre escritos canônicos e simples "livros de leitura", sem que isto, no entanto, tenha tido praticamente muita importância. O cânon hebraico foi ampliado, no Sínodo de Jerusalém em 1672, com a Sabedoria de Salomão, o Eclesiástico [Jesus Sirac], Tobias e Judite.

A Igreja latina católica, pelo contrário, segue praticamente a versão dos LXX (Septuaginta). Os esforços de Jerônimo e de outros escritores posteriores para que se reconhecesse o cânon hebraico não conseguiram impor-se. Pelo contrário: o Concílio de Trento em 1546 reconheceu a Vulgata como canônica e, concomitantemente, adotou definitivamente a compilação dos LXX.

As Igrejas protestantes adotam estritamente o cânon hebraico e conferem pouco valor aos livros deuterocanônicos. Lutero, no entanto, os considerou menos sob o ponto de vista formal do que do ponto de vista do conteúdo, tendo o Eclesiástico e a Sabedoria de Salomão sido altamente privilegiados por ele, ao passo que os livros canônicos foram envolvidos também em sua crítica. No confronto com o cânon hebraico, aceito em princípio, ele alterou a ordem de colocação dos livros, adaptando-a mais à ordem de colocação da Vulgata. A teoria judaica a respeito do cânon só foi adotada pela antiga dogmática protestante. A Igreja reformada mostra uma aversão crescente contra os livros deuterocanônicos.

Notas

¹ MacDonald, Memar Marqab, 1963

Referência bibliográfica

Introdução ao Antigo Testamento, E. Sellin, G. Fohrer, Vol. 2, Ed. Paulinas, 1978,729-744

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