quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Objeções ao Êxodo bíblico: incongruências, anacronismos e possíveis fontes e textos paralelos.

Os números e a logística do Êxodo

De acordo com Êxodo 12:37–38 o número de israelitas era “cerca de seiscentos mil homens a pé, além de mulheres e crianças”, mais muitos não-israelitas e o gado. O livro de Números 1:46 dá uma precisão total de 603.550 homens de 20 anos para cima. É difícil conciliar a ideia de 600.000 homens israelitas com a informação de que os israelitas estavam com medo dos filisteus e egípcios. Segundo a Chronological Index of Jewish History os aproximadamente 600.000 homens, mais mulheres, crianças, idosos e a multidão misturada de não-israelitas teria um número de uns 2 milhões de pessoas. Supondo que essa multidão marchasse formando 10 pessoas lado a lado, e sem contar o gado, eles formariam uma linha de 241 quilômetros de comprimento. A população inteira do Egito em 1250 a.C. é estimada a ter sido entre 3 e 3,5 milhões, e nenhuma evidência foi encontrada para que o Egito tenha sofrido uma catástrofe econômica e demográfica tal como a perda de uma população desta magnitude representaria, e nem o deserto do Sinai hospedou (ou poderia ter hospedado) esses milhões de seres humanos e seus rebanhos.

Alguns pensaram estes números em termos de figuras ou exemplos menores, como por exemplo, leram o termo “600 famílias” ao invés de 600.000 homens, mas cada uma das soluções tem seu próprio conjunto de problemas. A explicação mais provável é que 600.000 simbolize o total da geração destruída de Israel que deixou o Egito, nenhum daqueles que viveram para ver a Terra Prometida, enquanto que 603.550 é uma gematria (um código no qual os números representam letras ou números) para bnei yisra’el kor rosh, que em hebraico antigo significa “Os filhos de Israel, cada Indíviduo”.

Anacronismos

Embora a datação interna da bíblia para o Êxodo seja para o Segundo Milênio a.C., os detalhes apontam para a data do Primeiro Milênio a.C. para a composição do livro do Êxodo: Por exemplo, Ezion-Geber (um dos locais descritos pelo Êxodo), data de um período entre o século 8 e 6 a.C., com uma possível ocupação posterior no século 4 a.C., e os topônimos na rota do Êxodo que foram identificados – Goshem, Piton, Sucote, Ramesses e Cades-Barnéa – apontam para a geografia do primeiro milênio ao invés do segundo milênio a.C.

Similarmente, o receio do Faraó de que os israelitas pudessem se aliar com invasores estrangeiros parece improvável no contexto do fim do segundo milênio a.C., quando a região de Canaã era parte do império egípcio, e o Egito não enfrentava inimigos naquela direção, mas faz sentido no contexto do primeiro milênio a.C., quando o Egito era consideravelmente mais fraco e enfrentou uma primeira invasão do Império Aquemênida e posteriormente do Império Selêucida.

A menção do dromedário em Êxodo 9:3 também sugere uma data posterior de composição – a domesticação difundida do camelo como animal de rebanho é pensada a não ter acontecido antes do fim do fim do segundo milênio a.C., depois que os israelitas já tinham surgido em Canaã, e os camelos não tinham sido difundidos no Egito até cerca de 200–100 a.C.

A Cronologia dos eventos

Da mesma maneira, a cronologia da história do Êxodo sublinha a sua natureza essencialmente religiosa em vez da histórica. O número sete era sagrado à Deus no Judaísmo, e assim que os israelitas chegaram na Península do Sinai, onde eles encontraram Deus, no começo da sétima semana após sua saída do Egito; enquanto na construção do Tabernáculo, que é a morada de Deus entre o seu povo, ocorre 2666 anos depois de Deus criar o mundo, dois terços do tempo através de uma Era de quatro mil anos, que culmina em torno da re-dedicação do segundo templo em 164 a.C.

A Rota de Fuga

O Pentateuco cita os lugares onde os israelitas descansaram. Poucos nomes do começo do itinerário, incluindo Ramesses, Pithom e Sucote, são razoavelmente bem identificados dentro dos sítios arqueológicos, na borda oriental do delta do Nilo, assim como Cades-Barnéa, onde os israelitas passaram 38 anos após voltarem de Canaã [Episódos dos 12 espiões], mas dos outros lugares muito pouco é certo.

quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Linha de tempo do Budismo

Esta linha do tempo é apenas para dar alguns detalhes da história do Budismo, seus eventos marcantes, desde o nascimento de Gautama Buda até os dias atuais. A época de nascimento e morte de Gautama é incerta. Muitos historiadores no começo do século 20 dataram sua vida de aproximadamente 563 a.C. até 483 a.C. Mais recentemente, todavia, sua morte é data de maneira mais recente, entre 411 e 400 a.C., enquanto que no ano de 1988 surgiu a tese que ganhou ampla aceitação de datas dentre do limite de 20 anos mais tarde ou mais cedo ao longo do ano de 400 a.C. para a morte de Buda. Contudo, nenhuma destas cronologias alternativas tem aceitação total por parte dos historiadores.

Budismo Indiano

• 404 a.C. O primeiro concílio Budista é convocado logo após a morte de Buda em 404 a.C. Segundo a tradição budista, um concílio de 500 arhats foi realizado em Rajgir, para acordar os conteúdos do Dharma e do Vinaya. Ananda recitou os Suttas, cada um deles começando pela fórmula: “Assim eu ouvi”. O monge Upali recitou o Vinaya.

• 383 a.C. O Segundo concílio Budista é convocado por Kalasoka, da dinastia Shishunaga, e realizado em Vaishali.

• ~ 250 a.C. O Terceiro Concílio Budista, convocado pelo imperador Ashoka e presidido por Moggaliputta-Tissa, compila o Kathavatthu para refutar as visões heréticas e teorias mantidas por algumas seitas budistas. Os éditos de Ashoka no Império Máuria em apoio ao budismo.

• ~250 a.C. Ashoka envia vários missionários budistas para vários países distantes, como a China, Indochina e reinos malaios no leste e os reinos helenísticos no oeste, de modo a fazer o budismo conhecido por eles.

• 250 a.C. O primeiros textos completamente desenvolvidos em escrita Kharoṣṭhī nas inscrições em Shahbazgarhi e Mānsehrā na região de Gandhāra (que modernamente está em regiões do Paquistão e Afeganistão)

• século 3 a.C. Comerciantes indianos regularmente visitam portos na Península arábica. Isto explica a origem budista e indiana para certos topônimos na região.

• ~ 220 a.C. O Therevada é oficialmente introduzido no Sri Lanka por Mahinda, filho de Ashoka, durante o reinado de Devanampiya Tissa.

• 185 a.C. O general Pushyamitra Shunga derruba o Império Máuria e estabelece o Império Shunga, aparentemente iniciando uma onda de perseguição ao Budismo.

• 180 a.C. o rei Demétrio I da Bactriana invade a India até Pataliputra, e estabelece o reino Indo-grego. Demétrio teve boas relações com a religião budista, e inclusive a fomentou. Sob o Reino Indo-grego (de 180 a.C. – 10 a.C.), o budismo floresceu.

• ~150 a.C. O rei indo-grego Menandro I se converte ao budismo sob o sábio Nāgasena, de acordo com a narrativa do texto Milinda Panha


Expansão do Budismo



• 120 a.C. O imperador chinês Han Wudi (156 – 87 a.C.) recebe duas estátuas douradas de Buda, de acordo com inscrições nas cavernas Mogao, em Dunhuang.


• Século I a.C. O governador indo-grego Teodoro consagra algumas relíquias de Buda, dedicando-as ao deificado “Senhor Shakyamuni”.

• 29 a.C. De acordo com as Crônicas Sinhalesas, o cânone Páli é escrito durante o reinado do rei Vaṭṭagamiṇi (29 – 17 a.C.)

• 2 a.C. O Livro de Han Posterior (Hou Hanshu) menciona a visita, em 2 a.C., de enviados da etnia Yuezhi a capital chinesa, que dão ensinamentos orais dos sutras budistas.

• 67 O apoio de Liu Ying, irmão do imperador Guang Wudi, ao Budismo, é o primeiro caso documento de praticas budistas na China.

• 67 o Budismo chega à China com os dois monges Kasyapa e Dharmaraksha.

• 68 o Budismo é oficialmente estabelecido na China com a fundação do Templo do Cavalo Branco.

• 78 Ban Chao, um general chinês, subjuga o reino budista de Khotan.

• 78 – 101: De acordo com a tradição Mahayana, o quarto concílio Budista toma lugar sob o reinado de Kushana, rei de Kanishka, perto de Jalandar, India.

domingo, 21 de agosto de 2016

A narrativa do Êxodo bíblico e as tradições proféticas em Israel

A forma final do Pentateuco, tal como conhecemos hoje, foi baseada em tradições antigas. Estas tradições deixaram traços em mais de 150 referências através da bíblia. A mais antigas estão possivelmente nos profetas Amós e certamente em Oséias, ambos ativos no século 8 a. C. em Israel, ao contrário o Proto-Isaías e Miquéias, ambos ativos em Judá à mesma época, não existem tais referências. Parece razoável concluir que a tradição do Êxodo fosse importante no reino do Norte no século 8 a.C., mas não em Judá.

Em um recente trabalho [2009], S. C. Russel traça a tradição profética do século 8 a.C. à três variantes originalmente separadas: no reino do Norte de Israel, na Transjordânia e no reino do Sul de Judá. Russel propõe diferentes fundos históricos hipotéticos para cada tradição: para a tradição de Israel, que envolve uma jornada do Egito até a região de Betel, ele sugere que é a memória dos pastores que poderiam se mover para e do Egito em tempos de crise, para a tradição da Transjordânia, que se foca na libertação do Egito sem a jornada pelo deserto, ele sugere a memória da retirada do controle egípcio ao fim da Idade do Bronze Final, e para Judá, cuja tradição é preservada na chamada Canção do Mar, ele sugere a celebração de uma vitória militar sobre o Egito, embora seja impossível sugerir o que essa vitória possa ter sido. 


Referências Bibliográficas

Introduzione alla lettura del Pentateuco, Jean Louis Ska
Images of Egypt in early biblical literature, Stephen C. Russel

A complexidade das provas do êxodo bíblico

Embora a questão da historicidade continue a atrair a atenção popular, muitas historias do antigo Israel não levam em consideração informação recuperável ou mesmo relevante sobre a história da origem de Israel. As evidências arqueológicas não apoiam a história contada no livro do Êxodo, e a maioria dos arqueólogos abandonaram a investigação de Moisés e do Êxodo como uma busca infrutífera. A opinião da maioria dos estudiosos bíblicos modernos é que a história do êxodo foi formada em sua forma presente no período pós-Exílio, embora as tradições atrás da história são mais antigas e podem ser traçadas nos escritos dos profetas do século oitavo a.C. Como muito além do que a tradição pode ir não pode ser contada, presumivelmente uma história original do êxodo jaz escondida em algum lugar dentro das antigas revisões e alterações, mas séculos de transmissão obscureceram sua presença, e sua essência, precisão e data são agora difíceis de se determinar.

Os dados arqueológicos não concordam com o que é esperado da história do êxodo bíblico: não há evidências de que os judeus viveram no Antigo Egito, a Península do Sinai  não mostra sinais de qualquer ocupação por todo o segundo milênio a.C., e até mesmo a região citada como Cades-Barnéa [Kadeh-Barnea], onde os judeus foram ditos terem passado 38 anos, era inabitada antes do estabelecimento da monarquia israelita.

Os estudiosos geralmente concordam que embora a narrativa do êxodo contenha elementos do mais tardar do segundo milênio a.C., não é demonstrado que estes elementos não pudessem pertencer a qualquer outro período e que eles sejam consistentes com o conhecimento que um escritor do primeiro milênio a.C. que estivesse tentando definir uma história antiga do Egito pudesse ter conhecido. Poucos estudiosos continuam a discutir a historicidade ou menos a plausibilidade da história, embora os historiadores do antigo Israel raramente respondam.  Os estudiosos que ainda defendem a historicidade do êxodo avançam em uma série de argumentos para explicar a ausência de provas: possivelmente os registros egípcios da presença dos israelitas e sua fuga podem ter sido perdidos ou suprimidos,  possivelmente (ou provavelmente) os fugitivos israelitas não deixaram nenhum vestígio arqueológico no deserto, possivelmente os enormes números relatados na história foram mal traduzidos, etc.

Referências:

Biblical History and Israel's Past; Brad Kelle , Megan Bishop Moore; pág. 88-90
História da Religião de Israel, George Fohrer.

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

A controvérsia do Massacre dos Inocentes

O Massacre dos Inocentes não é mencionado além do Evangelho de Mateus 2:16 e em nenhum dos escritos cristãos posteriores provavelmente baseados neste evangelho. O historiador judaico-romano Josefo, que viveu no I século da nossa era, não menciona isso em seu livro Antiguidades dos Judeus (c. 94 d.C.). Desde que todas as evidências canônicas dos eventos ocorridos são encontradas apenas no Evangelho de Mateus, os estudiosos do Novo Testamento como Daniel J. Harrington tem dito que a historicidade do evento é “uma questão aberta que provavelmente nunca será definitivamente decidida”. Muitos biógrafos recentes de Herodes negam que o evento tenha ocorrido.

Todo ano, na tradição judaica, o Sêder de Pessach relembra a morte dos primogênitos no Egito. Durante a contagem do Ômer, as mortes dos estudantes de Rabbi Akiva são lembradas na tradição judaica. Assim, tragédias envolvendo mortes massivas, tanto de grandes ou menores magnitudes, e antes e depois, as historias dos evangelhos são lembradas pela tradição judaica. Todavia, não existe nenhum feriado referente, dia de jejum ou outra menção de Herodes ordenando as mortes das crianças judaicas na observância judaica. Os judeus, que o evangelho alega terem tido suas crianças mortas por Herodes, se silenciam sobre este evento.

Entre os historiadores que duvidam da historicidade do massacre, Geza Vermes e E. P. Sanders, consideram a história como a parte de uma hagiografia criativa. Muitos estudiosos argumental que a historia é um dispositivo apologético ou um cumprimento forjado de uma profecia, enquanto outros apontam para o silêncio de Josefo, que registrou muitos exemplos do uso da violência de Herodes para proteger seu poder, incluindo o assassinato de seus próprios filhos. Robert Eiseman argumenta que a história pode ter suas origens no assassinato dos filhos de Herodes, um ato que produziu uma profunda impressão na época. David reconhece que o episódio “contém nada que seja historicamente impossível”, mas adiciona que o interesse real de Mateus é uma reflexão teológica sobre o tema do cumprimento do Antigo Testamento. Stephen Harris e Raymond Brown similarmente argumentam que o propósito de Mateus é apresentar Jesus como o Messias, e o Massacre dos Inocentes como o cumprimento das passagens em Oséias (referindo-se ao Exodo), e Jeremias (referindo-se ao exílio babilônico). Brown também vê a história como modelada na narrativa do livro de Êxodo do nascimento de Jesus e a décima praga, que o envolveu o assassinato dos primogênitos hebrews por Faraó (Exodo 11:5). Brown e outros argumentam que, baseados na população estimada de Belém de 1000 habitantes na época, o maior número de crianças que poderia ter sido assassinadas teria sido vinte, e R. T. France, abordando a ausência da historia nas Antiguidades dos Judeus, argumenta que o “assassinato de poucas crianças em uma pequena vila não está uma escala para se encaixar o maior número de assassinatos espetaculares registrados por Josefo”.

domingo, 20 de setembro de 2015

Cristianismo e Tempo Linear

A tese defendida por Mircea Eliade em sua obra “O Mito do Eterno Retorno” é que a mais importante diferença entre o homem das sociedades arcaicas e tradicionais, e o homem das sociedades modernas, com sua forte marca judaico-cristã, encontra-se no fato de o primeiro sentir-se indissoluvelmente vinculado com o Cosmo e os ritmos cósmicos, enquanto que o segundo insiste em vincular-se apenas com a História. Mas para isso temos que analisar primeiro a relação destas duas religiões com o tempo linear, lembrando que, na opinião de muitos estudiosos, o judaísmo é a primeira religião da história conhecida.
Mircea Eliade vê as religiões abraamanicas como um ponto de divisão entre a antiga visão cíclica do tempo e a moderna visão linear do tempo, notando que, no caso delas, os eventos sagrados não estão limitados à uma era primordial distante, mas continuam através da história: “o tempo não é [apenas] o Tempo Circular do Eterno Retorno, ele se tornou o Tempo Linear e irreversível”. Ele então vê o Cristianismo como exemplo final de uma relação que abraça o tempo linear e histórico. Quando Deus se torna um homem, dentro da linha da história, “toda a história se torna uma teofania”. De acordo com Eliade, o “Cristianismo se esforça para salvar a história”. No cristianismo, o Sagrado entra em um ser humano (Cristo) para salvar humanos, mas ele também entra na história para “salvar” a história e transformar eventos históricos ordinários em algo “capaz de transmitir a mensagem trans-histórica”.
Da perspectiva de Eliade, a mensagem trans-histórica do Cristianismo pode ser a mais importante ajuda ao homem moderno poderia ter ao confrontar o terror da história. Assim, ainda na perspectiva de Eliade, a história de Cristo se torna o mito perfeito para o homem moderno. No cristianismo, Deus de bom grado entrou no tempo histórico ao nascer como Cristo, e aceitou o sofrimento a ser seguido. Por identificar-se com Cristo, o homem moderno aprende a confrontar os eventos históricos dolorosos. Em última análise, Eliade vê o cristianismo como única religião que pode salvar o homem do “Terror da história”.
Na visão de Eliade, o homem tradicional ou das sociedades arcaicas vê o tempo como uma repetição sem fim dos arquétipos mitológicos. Em contraste, o homem moderno abandou os arquétipos mitológicos e entrou no tempo linear e histórico, neste contexto, ao contrário de muitas outras religiões, o Cristianismo atribui valor ao tempo histórico. Assim, Eliade conclui, “O Cristianismo incontestavelmente prova ser a religião do “homem decaído”, do homem moderno que perdeu “o paraíso dos arquétipos e da repetição”.

Bibliografia e Referências
O Mito do Eterno Retorno, Edições 70, M. Eliade.

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

A diversidade do Cristianismo Primitivo


O Cristianismo Moderno é amplamente diverso, em termo de suas estruturas sociais, crenças e práticas. Mas esta diversidade é leve em comparação com o Cristianismo durante os três primeiros séculos.

Quando falamos do Cristianismo no mundo moderno nós naturalmente pensamos de uma coisa. Mas ao mesmo tempo, nós sabemos que o Cristianismo é, em fato, uma ampla variedade de coisas. Isto pode ser visto no domínio de crenças de diferentes cristãos, incluindo tanto as crenças majoritárias como aquelas referentes a Deus, a natureza de Jesus e a ressurreição de Jesus. Muitos cristãos pensam de Deus como um ser pessoal, uma espécie de “superhumano” no céu. Outros acham isso blasfemoso ao fazer Deus em nossa própria imagem. Ainda outros vêem Deus como uma força impessoal que está atrás de tudo o que vive no universo. Muitos cristãos colocam grande importância na crença de que Jesus morreu na cruz pela salvação. Outros colocam mais ênfase em sua vida e ensinamentos morais. Para alguns cristãos a ressurreição é uma reanimação física e verdadeira do corpo de Jesus. Outros consideram a ressurreição de Jesus como sendo uma alegação simbólica. O inferno, para alguns cristãos, é o destino daqueles que não mantiveram as crenças corretas. Outros consideram o inferno a ser uma metáfora para a vida separada de Deus.

O mesmo pode ser dito das práticas cristãs, tais como batismo e Eucaristia (comunhão), para não mencionar as práticas incomuns de algumas comunidades cristãs (manejo de serpentes, batismo pelos mortos). O Batismo pode significar, por exemplo, um rito que remove o pecado original, o substituto cristão para circuncisão, um sinal exterior de limpeza espiritual ou um caminho para a salvação. Alguns cristãos acreditam que tomando parte na comunhão, eles estão literalmente comendo o corpo e o sangue de Cristo, enquanto que, para outros cristãos, a Eucaristia é um alimento simbólico. De particular relevância para esta série de lições são as amplamente diferentes visões das Escrituras entre os diferentes grupos cristãos hoje, tanto seu conteúdo (quais livros realmente pertencem?) e seu caráter (em qual maneira, ao todos, foram eles inspirados?). Como foram as decisões sobre quais livros deveria ser incluídos? Quem fez estas escolhas e em quais fundamentos? São todas as Escrituras Cristãs a literal e precisa palavra de Deus?

Assim, a despeito daquilo que podemos imaginar, a Cristandade não é monolítica, e nunca foi. Nesta lição, consideraremos as variedades de Cristianismo no mundo antigo, variedade que fazem as modernas diferenças entre os cristãos parecerem inofensivas por comparação. Em particular, olharemos as primitivas formas de Cristianismo que não sobreviveram, que se extinguiram, que perderam a luta para converter adeptos e estabelecer domínio, formas de Cristianismo que então se tornaram perdidas. E nós estaremos especialmente interessados em explorar as Escrituras destes Cristianismos perdidos, para ver o que eles alegados seguidores de Jesus acreditam e como esperavam agir.

É importante considera o escopo da nossa investigação. Nosso tempo de referência cobrirá o período imediatamente posterior ao Novo Testamento até o famoso Concílio de Nicéia no início do século quatro: rudemente os vários cristianismos do secundo e terceiro séculos da nossa era. Uma ampla variedade de crenças é encontrada no Novo Testamento, mas este assunto é abrangido já em outro curso de lições. Para esta lição, é importante apontar que existiam muitas diferentes espécies de livros no Novo Testamento e que eles eram escritos por diferentes autores, em diferentes tempos, para diferentes públicos e com diferentes mensagens. Em muitas instâncias, estas mensagens não são apenas levemente diferentes, mas elas parecem representar diferentes interpretações do significado de Jesus, o caminho da salvação e a relação da fé em Jesus com a religião dos judeus.

Estas dificuldades continuaram no segundo e terceiro séculos. Nós terminaremos nossa investigação no começo do quarto século, a cerca da época do Concílio de Nicéia, por que é onde nós encontramos a primeira publicação oficia de uma crença cristã “ortodoxa”, que por uma vez e por todas eliminou, para a maioria dos cristãos, muitas das opções primitivas. Nosso assunto não é o amplo domínio de antigas religiões neste período, mas apenas os grupos religiosos que alegavam ser cristãos, ou seja, que alegavam aderir a religião ensinada por Jesus e seus seguidores. A extensão de crenças entre estes grupos religiosos é notável, seja com respeito a Deus (Havia apenas um?), seja com relação ao mundo (Foi ele criado por um Deus verdadeiro?), Seja com relação a Cristo (Era ele humano? Divino? Ambos?), com relação à sua morte (Havia ele morrido pelos pecados? Havia ele mesmo morrido?), e uma variedade de outras doutrinas críticas.

Esta variedade de crenças cristãs primitivas levanta uma importante questão: Por que os vários cristãos primitivos que mantinham tais crenças bizarras simplesmente não liam o Novo Testamento para ver se eles estavam errados? A resposta por ser óbvia para alguns, mas surpreendente para outros. Estes cristãos do segundo e do terceiro séculos não liam o Novo Testamento porque o Novo Testamento simplesmente ainda não existia.

Os livros em si, naturalmente, já haviam sido escritos, mas eles não tinham sido coletados em um sagrado e autorizado canon de Escritura. O termo canon se refere a uma coleção de livros autorizados. Um dos pontos que nós aprenderemos é que o nosso canon não existia como uma coleção oficialmente reconhecida durante os segundo e terceiro séculos. Os vinte e sete livros que inicialmente fizeram parte do canon do Novo Testamento representam os vinte e sete livros escritos pelos seguidores de Jesus na segunda metade do primeiro século. O canon consiste de quatro tipos de livros: Evangelhos (histórias da vida de Jesus); o Livro de Atos (uma narrativa da vida e ministério dos apóstolos após a morte de Jesus); Epístolas (cartas escritas por cristãos individuais ou grupos); e o Apocalipse (uma narrativa do que se tornará conhecido no final do tempo). Outros livros foram escritos no mesmo tempo, contudo, também alegando serem escritos por seguidores de Jesus. Cada um dos primitivos grupos cristãos que mantinham suas crenças e práticas distintas tinha livros que eram creditados a terem sido escritos pelos próprios apóstolos de Jesus: Evangelhos, por exemplo, alegadamente escritos por seus discípulos Tomé, Filipe e Maria Madalena.

Para colocar contexto para estas questões, é importante compreender alguns traços básicos da expansão do Cristianismo do tempo de Jesus até o início do quarto século se espalhando em diferentes partes do mundo romano com o tempo, com compreensões distintas do que significava ser um seguidor de Jesus e escritos autorizados distintos para seus pontos de vista. A existência destas “outras” Escrituras conduz a outras questões. Se, no secundo e terceiro séculos, haviam muitos livros apostólicos lidos pelos muitos grupos de cristãos, quais deles eram certos? Quais errados? Quais eram de fato escritos por apóstolos? Como saberíamos? Melhor ainda, como os padres da Igreja que finalizaram o nosso canon de vinte e sete livros sabiam? E o que aconteceu então a todos os outros livros que não fizeram parte, uma vez que estes debates cristãos particulares foram encerrados?

Estas serão as controvérsias que nós dirigiremos neste curso, assim como olharemos outras formas de Cristianismo que não “venceram” e as Escrituras que estas formas de cristianismo recorreriam, algumas das quais nós conhecemos há um bom tempo, outras que foram descobertas em tempos modernos por arqueologistas e minuciosos beduínos. A seguir estão algumas das questões que iremos indagar: O que nós sabemos destes vários grupos? Que espécie de escritos autorizados ele tinham para seus pontos de vista? Nós temos o remanescente de qualquer um destes livros? O que eles dizem? Como um grupo terminou vencendo a disputa? E como nosso atual canon do Novo Testamente emergiu disso? ∎

Leitura Essencial

After the New Testament, Barth Ehrman, capítulos 1, 6-9
The New Testament Canon: Its Making and Meaning, Harry Gamble