segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Origem do Cânone do Novo Testamento


1 Formação do Cânone do Novo Testamento Até o Final do Século II

1.1 Autoridades do cristianismo primitivo.

Os vinte e sete livros do Novo Testamento provavelmente só foram preservados por se acharem em conexão com as coleções eclesiásticas, e não por terem sido copiados diretamente de originais isolados ¹. A história do cânone tenta entender de que modo tais coleções e, finalmente, a coleção do NT tomaram a forma que possuem.

Embora os livros do NT só tenham chegado até nós como parte de uma coleção aprovada pela Igreja, nenhum deles foi escrito com o objetivo de ser incorporado a tal coleção. Mesmo que já houvesse uma coleção das epístolas paulinas no fim do século I, ela não era encarada como "Sagrada Escritura". Mas Jesus e o cristianismo primitivo nunca dispensaram a Sagrada Escritura: eles consideravam o AT como "as escrituras" (Mc 12,24), que provinham do judaísmo e que eram citadas em todas as três partes do antigo cânone do AT. A revelação de Deus fora conservada de forma escrita, como se mostrava evidente para a Igreja primitiva bem no princípio de sua existência.

No entanto, é profundamente questionável a ideia de que, antes do fim do século I, já houvesse um cânone do AT delimitado e encerrado, como uma entidade exatamente definida. O Pentateuco foi fixado no século III a.C., e o neto de Jesus Sirac, no Prefácio do Livro de Sirac (mais ou menos em 117 a.C.) mostra conhecer ho nómos e hoi prophêtai como coleções fixas, embora para ele hàlla pátria biblía ainda não se achem delimitadas. Mas, apesar da certeza de que no judaísmo do século I a.C. já havia uma "Sagrada Escritura", não existia um "cânone" precisamente limitado. Esse estado de coisas deve ter favorecido o judaísmo como um todo até fins do século I d.C., já que, tanto no seio da comunidade judaica de Qumrã quanto dentro da comunidade cristã proveniente do judaísmo palestinense (cf. Lc 11,49; Jo 7,38; 1 Cor 2,9; Tg 4,5; Jd 14s), eram usados como "Escritura" textos que não apareciam no último cânone dos rabinos.

Entre os escritores do NT surge a designação de Escritura, também conhecida do judaísmo contemporâneo, para referir-se à "lei e aos profetas"², porém não a divisão da "Escritura" em "Tora, Profetas e Escritos", que só se tornou comum nos círculos rabínicos a partir do século I d.C.³. A definição das Escrituras, transmitida e usada ao longo do século I d.C. pelos rabinos no cânone "Massorético" das trinta e nove escrituras⁴, durante vários séculos não foi adotada pela igreja cristã. A igreja possuía um "AT" muito mais aberto, que, do século II em diante, passou a ser definido de várias maneiras⁵. Assim, o cristianismo primitivo tinha uma "Sagrada Escritura", mas não reconhecia um cânone claramente definido ou uma norma exclusiva.

Para Jesus, como também para a Igreja primitiva, a avaliação e a compreensão da "Sagrada Escritura" estava sujeita à autoridade crítica de Jesus ou do Espírito de Deus, enviado pelo Senhor ressuscitado, embora esta atitude crítica nem sempre fosse consciente⁶ (cf., por exemplo, Mt 5,21 ss; Jo 5,39 ss; 10,35 ss; 2Cor 3,12 ss; 2Tm 3,15; Hb 8,13). Não se pode provar que no culto cristão da época apostólica os textos do AT fossem lidos regularmente, de modo que, também deste ângulo, fica impossível sabermos se já havia um caráter normativo exclusivo de uma Sagrada Escritura firmemente definida nos tempos do cristianismo primitivo.

Não é de surpreender, pois, que dentro da Igreja, - e isto é perceptível primeiramente nos textos de Paulo - acrescentando-se ou superpondo-se à norma do AT, surja uma nova norma aplicável ao kyrios terreno e ressuscitado. Para Paulo, qualquer questão contestada de doutrina, de fé ou de vida é resolvida pela "palavra do Senhor" de maneira tão categórica quanto pela "palavra da escritura". Em 1Ts 4,15, ele ministra instrução teológica apoiado numa palavra de Jesus. Em 1Cor 9,9.13.14, coloca, ao lado da prova escriturística, a instrução autorizada do Senhor. Em 1 Cor 11,23ss, ele descreve o ato e a palavra de Jesus na instituição da ceia do Senhor como sendo a norma para a celebração dentro da comunidade. Em Cor 7,10.12.25, ele chama a atenção para a imensa distância que separa o mandamento do Senhor, que é incondicionalmente obrigatório, e suas próprias instruções como apóstolo autorizado pelo Senhor.

No fim da época apostólica, encontramos a mesma autoridade incondicional do kyrios preservada pela tradição da igreja ou atestada pelo próprio kyrios (Jo 18,9.32; At 20,35; Ap 2,1.8, entre outros).

Simultaneamente, porém, progride a evolução de uma ideia surgida posteriormente. Se a autoridade do kyrios é incondicional, por outro lado acontece também que, quando Paulo se vê obrigado a tomar uma decisão, ele próprio apela para o fato de que goza da confiança do Senhor e de que possui o Espírito de Deus (cr. 1Cor 7,25.40). Por isto, sua instrução kyríou estín - isto é, o próprio Senhor fala através dele. Como apóstolos, ele foi enviado, investido de autoridade, diá Iesoû christoû kaì theoû patrós, e qualquer outros evangelho que não venha do Senhor representa corrupção e pode ser amaldiçoado (Gl 1,1.7ss; cf. 2Ts 3,17).

De modo semelhante, os mestres do período apostólico posterior apelam para a autoridade em seus próprios nomes (Hb 10,26s; 13, 18s; 3Jo 5ss; p 1,1-3), ou recorrem à autoridade de um dos primeiros apóstolos (Ef 4,1; 1Tm 5,14; 6,13ss). Entretanto, esta autoridade, derivada e recebida, de um apóstolo de Jesus Cristo é, como a do Senhor, uma autoridade viva que cresce com o ato da proclamação, e não é igual à autoridade da Escritura que se situa na linha da "Escritura" do AT. Até mesmo o Apocalipse, que devia ser lido durante o culto, apela somente para a inspiração (22,18s) e, por conseguinte, para a invulnerabilidade do texto do vidente, mas não alude à "autoridade canônica".

Apesar de Paulo pressupor que suas epístolas serão lidas nas reuniões ou assembleias da comunidade à qual escreve, e que, ocasionalmente, poderão ser também passadas de uma comunidade para outra (cf. 1Ts 5,26s; 2Cor 13,12; Rm 16,16; Cl 1,1;4,16; ver também a conclusão litúrgica de 1Cor 16,20-23), e embora Hb (11,32) e 1Pd (5,14) se destinem evidentemente a uma leitura pública, ainda isso não constitui prova suficiente para se afirmar que os textos cristãos primitivos estivessem colocados no mesmo plano que a "Escritura" do AT. Na verdade, de todos estes fatos podemos concluir que uma nova norma de vida estava sendo formada no seio da Igreja, a qual incluía em primeiro lugar o Senhor e, em seguida, os apóstolos que deram testemunho da mensagem do Senhor.

1.2 Etapas preliminares na formação do Cânone da época pós-apostólica

A atitude dos cristãos em face das normas da doutrina cristã e da vida cristã que encontramos no fim da época apostólica (isto é, mais ou menos em fins do século I d.C.) podem se igualmente encontradas no princípio da época pós-apostólica, principalmente na fase mais antiga dos padres apostólicos. Colocados lado a lado e merecendo igual valor, acham-se a "Escritura" e os lógoi toû kyríou Iesoû ou as "palavras dos santos profetas" e "o entolè toû kyríou que foi deixado pelos apóstolos" (I Clem 13,1s. 46, 2s, 7s; 2Pd 3,2). Correspondente a isso existe o fato de que Inácio de Antioquia designa como autoridades "os profetas, mas sobretudo o evangelho" (Esm 7,2), e diz que, acima do que "ficou escrito" nos "documentos" (isto é, no AT), ele coloca "Jesus Cristo", cuja cruz, morte e ressurreição, e a fé que ele desperta constituem "os documentos sagrados" (Filad 8)⁷. A propósito do "Senhor", porém, Inácio declara que ele nada fazia sem o Pai com quem se achava unido, e não o fazia "nem ele pessoalmente, nem através dos apóstolos" (Magn 7,1; cf. 13,1). Por aí ele mostra que a revelação é transmitida pela palavra do próprio Cristo ou pela dos apóstolos. Ao lado do AT como "Escritura" ele estabeleceu a autoridade do "Senhor", a qual desde o princípio se apresentou acessível mediante as palavras do Senhor, exatamente da mesma maneira que através do testemunho dos apóstolos. É significativo, porém, que, ao falar das palavras do Senhor, não tenha ele acrescentado nenhuma indicação relativa ao fato de haverem elas sido escritas, e, até a presente data, não existir unidade quando ao saber-se se I Clem e Inácio ⁸ conheceram ou não⁹ um evangelho escrito. Portanto, como "o Senhor" e "os apóstolos" nessa época constituíam "um cânone puramente ideal, intangível e não sujeito a controle"¹⁰, com o desaparecimento dos apóstolos e daqueles que os ouviram diretamente, mais cedo ou mais tarde reconheceu-se que a voz autorizada do Senhor e dos apóstolos devia ser procurada nas Escrituras, o único lugar onde ela inda podia ser ouvida. Imediatamente ou um pouco depois, por conseguinte, o problema concernente à autoridade de tais escrituras teria de ser levantado.

A coletânea dos textos cristãos primitivos que estava começando a ser feita trouxe um estímulo à evolução desse processo. Muito provavelmente, no fim do século I já havia uma coleção das epístolas de Paulo. Na verdade, uma coleção de dez epístolas paulinas (sem as epístolas Pastorais) só aparece claramente confirmada em Marcião, por volta do ano 140, mas é bem pouco provável que Marcião tenha sido o primeiro a reunir tais epístolas. Já I Clem, que teve sua origem em Roma, não só utiliza Rm (35,5s) e Hb (36,2 ss), como também se refere à Epístola aos coríntios a quem se dirigia tèn epistolèn toû makaríon Páulou e apresenta citações de 1Cor (47, 1-3; cf. também 37,5; 49,5), da qual ela precisava conhecer uma cópia.

Inácio escreve aos efésios dizendo que Paulo os menciona em cada uma de suas cartas (Inácio, Ef 12,2), e mostra, com isso, conhecer uma coleção das epístolas paulinas que inclui Ef; vê-se isto também através das claras alusões que ele faz a pelo menos duas epístolas paulinas ¹¹. E 2Pd 3,15s fala de "todas as cartas" de nosso amado irmão Paulo, o que pressupõe que elas fossem conhecidas do leitor.

O mais tardar, portanto, no princípio do século II. já havia uma coleção das epístolas paulinas que era conhecida na Ásia Menor. E é muito provável que esta coleção já contivesse todas as dez epístolas que figuravam no cânone de Marcião. Para explicar mais precisamente a formação de tal coleção, surgiram várias hipóteses: a coleção das epístolas paulinas fora criada no fim do século I, quando do aparecimento dos Atos dos Apóstolos despertou novo interesse pelas epístolas paulinas, antes completamente negligenciadas; e esta coleção, que continha sete epístolas (1 e 2Cor, 1 e 2Ts, e Cl-Fm estavam respectivamente unidas numa só epístola), foi organizada de acordo com a extensão dos textos, e Ef figurou como uma introdução à coletânea. A publicação desta coletânea em Éfeso estimulou a redação de numerosas epístolas cristãs e a formação de outras coleções de epístolas (Ap 2 e 3, Inácio)¹². Realmente, porém, não existe nenhuma evidência que nos leve a afirmar que Ef tenha sido colocada no início da coleção ¹³. É muitíssimo pouco provável que 1 e 2Cor, 1 e 2Ts, e Cl-Fm em sua origem tenham estado reunidas para formar uma única epístola, tendo-se em vista as conclusões literárias vinculadas com esta teoria, e tal suposição não se encontra confirmada em lugar algum.

Não se pode demonstrar que as epístolas paulinas tenham ficado completamente esquecidas até o início do século II (1Pd e Hb indicam até o contrário). Tudo o que resta dessa tese é a conjectura provável de que as epístolas paulinas, na primeira coleção, estivessem distribuídas de acordo com a extensão ¹⁴, e que tal coleção tenha surgido na Ásia Menor ¹⁵. A suposição de que a coleção mais antiga tenha aparecido em Corinto por volta do ano 80, e que um redator teria organizado com base nas quatorze epístolas paulinas originais ¹⁶, não pode ser sustentada, por ser tal redação muito duvidosa, e arbitrária a exclusão de Cl, Ef e Fm. Mesmo assim, porém, há detalhes que permanecem incertos. Só se tem a certeza de uma coisa: desde o início do século II: que uma coleção de epístolas paulinas já era amplamente conhecida e gozava de alta estima, embora não estivesse de forma alguma colocada ao lado da "Sagrada Escritura" do AT.

Muito mais incerta é a resposta à pergunta sobre quando foram redigidos os Evangelhos, principalmente porque não se sabe com clareza nem se I Clem e Inácio conheciam textos evangélicos. Mesmo que Inácio conhecesse Mt e talvez Jo ¹⁷, ele não se referia a nenhuma fonte escrita e não demonstrava possuir conhecimento algum de uma coleção de Evangelhos.

A asserção de que os quatro Evangelhos foram reunidos no princípio do século II ¹⁸ não pode ser provada. Mais ou menos na metade do século II, porém, a situação parece já estar mudada. II Clem conhece Mt e Lc, como o mostra a parte principal da Epístola de Policarpo (caps. 1-12), que remonta aos anos 30 do século II. O "Evangelho desconhecido", que teve sua origem no segundo quarto do século II, evidencia o conhecimento de todos os quatro Evangelhos ¹⁹, e o mesmo é provavelmente verdade a propósito do Evangelho de Pedro ²⁰, que provém de uma época um pouco anterior à metade do século II. Papias não só se manifestou a respeito das circunstâncias que envolveram a redação de Mt e Mc, como também comparou Mc com um dos outros evangelhos, provavelmente o de Mt. Se ele conhecia igualmente Jo é um assunto questionável ²¹. Poder-se-ia atestar a existência nessa época de um cânone dos quatro evangelhos, se se pudesse admitir como mais do que provável a hipótese de que Taciano houvesse criado o seu Diatessaron antes de seu rompimento com a grande Igreja ²².

Mas, ainda que a existência de um arranjo combinado dos quatro evangelhos pudesse ser atestada com certeza antes do fim da primeira metade do século II, a reunião dos textos dos quatro evangelhos num único texto composto feito por Taciano, bem como a preferência de Papias pela tradição viva do kyrios (tà parà zóses phonês kaì menoúses) em confronto com "o que vem dos livros" ²³, mostra que estes últimos evangelhos canônicos já começavam a conquistar significação crescente e autoridade como fonte da tradição. Eles ainda não eram encarados como uma norma exclusiva e indiscutível e nem colocados no mesmo nível da "Escritura" do AT.

Juntamente como os evangelhos canônicos, já em pleno decurso do século II, gozavam de amplo uso os evangelhos "Apócrifos" e a tradição oral de Jesus transmitidos por escritores eclesiásticos. Não existe nenhuma prova, durante este período, que confirme a leitura dos evangelhos nas reuniões de culto.

Paralelamente a tais coleções de textos provenientes dos tempos apostólicos, por volta da metade do século II, surgiu um movimento que serviu de base para o aparecimento da "Sagrada Escritura". A parte principal da Epístola de Policarpo, que, além dos textos evangélicos, usa igualmente as epístolas de Paulo e a Primeira Epístola de Pedro, só se refere de modo explícito ao kyrios (Policarpo, Fil 2,3;7,2) e aos mandamentos do Senhor, dos apóstolos e dos profetas (kathós autòs eneteílato kaì hoi evangelisámenoi hemâs apóstoloi kaì hoi prophêtai hoi prokerycsantes tèn éleusin toû kyríou hemôn, 6,3), e, assim, coloca ao lado do AT a pregação do Senhor e a dos apóstolos ²⁴, mas não faz o mesmo com novas Sagradas Escrituras.

Um pouco mais tarde, a chamada II Clem (14,2) aponta com autoridade em matéria de doutrina o fato de que a origem da Igreja repousa sobre tà biblía kaì hoi apóstoloi e, ao fazer isso, de acordo com o sentido mais provável do texto, ela coloca os apóstolos como autoridades vivas que merecem figura ao lado das escrituras do AT ²⁵. No entanto, a mesma Segunda Epístola de Clemente, que muitas vezes utiliza citações do A como légei he graphé, légei ho kyrios (14,2; 13,2), etc., também acrescenta em 2,4 - em prosseguimento a citação do AT - um dito de Jesus (Mt 9, 12b) com a fórmula kaì hetéra dè graphè légei. Já que aqui, sem dúvida alguma, se constata que um evangelho escrito é equiparado com ao AT porque contém o testemunho das palavra do Senhor ²⁶, realmente não se pode discutir que, desta maneira, um evangelho escrito se apresenta como uma autoridade equivalente ao AT ²⁷, mas, mesmo assim, ainda não se pode perceber se, a tal altura dos acontecimentos, a existência de uma nova norma escriturística já era uma coisa clara.

Mais ou menos na mesma época, a Epístola de Barnabé (4,14) transcreve um dito de Jesus (Mt 22,14) usando na citação fórmula idêntica à que é frequentemente empregada para os textos do AT hos gégraptai, sem indicar que o autor está apresentando um dito do Senhor. Nesta passagem, não se pode excluir a possibilidade de que o autor tenha ficado decepcionado com a origem da citação; mas há necessidade dessa suposição, e Barn 4,14 poderia reforçar a evidência do fato de que um evangelho escrito estaria começando a receber valor igual ao da escritura do AT.

Existe a mesma incerteza com relação à Epístola de Policarpo, eu num determinado ponto (Fhil 12,1) introduz uma citação de Ef 4,26, acrescentando em seguida: ut bis scripturis dictum est ("tal como está escrito nestas escrituras"). Como, imediatamente antes disto, Policarpo se refere às sacrae litterae, isto é, ao AT, fica bastante admissível que, neste caso, por scripturis ele pretenda exprimir o AT. Por outro lado, porém, não se deve excluir - embora seja improvável - a hipótese de que, nesta ocasião isolada, ele se refira a um texto de Paulo como scripturae ²⁸. De qualquer maneira, estes textos mostram a possibilidade de já se estarem dando os primeiros passos em direção a uma nova Escritura.

Uma vez que, desde os primórdios do período pós-apostólico, as palavras do Senhor e o testemunho vivo dos apóstolos são citados de modo semelhantes como normas divinas, a emergência de uma "Escritura" em duas partes transformou-se numa necessidade intrínseca na medida em que aumentava a distância que separava os cristãos do período apostólico.

1.3 Os primórdios da formação do Cânone na segunda metade do século II

Logo depois da metade do século II, Justino mártir, conta (Apol. 67.3) que no serviço do culto dominical eram lidos tá apommemonemata tôn apostólon è tà syngrámmata tôn prophetôn, e, através destas "memórias dos apóstolos", conforme as informações dadas por ele mesmo (Apol. 66.3), o que o santo padre da Igreja pretendia era exprimir o próprio Evangelho. Correspondentes a este intuito são as frequentes citações extraídas por Justino dos textos sinóticos como gégraptái en toîs apomnemoneymasi tôn apostólon ou expressões similares (por exemplo, Dial. 101.3; 104.1). Ele enfatiza explicitamente que tais memórias foram escritas "pelos apóstolos ou por aqueles que eram seus discípulos" (Dial. 103.8), e, desta maneira, inclui igualmente os evangelhos de Mc e Lc nas "memórias apostólicas", já que, segundo a tradição, foram elas escritas por discípulos dos apóstolos. Não se sabe ao certo se Justino conhecia Jo, pois que não inclui textos joaninos em nenhuma das alusões às memórias apostólicas. Apesar de, em Apol. 61.4, existir realmente uma citação introduzida por ho christòs eîpen, a qual faz pensar em Jo, ela bem que poderia vir de uma tradição litúrgica ³⁰, e chega a ser bem possível que alguns dos textos sinóticos harmoniosamente citados por Justino tenham conseguido alcançá-lo mediante a tradição oral ³¹. E ele também cita ditos de Jesus tirados dos evangelhos isoladamente, e, sem a menor dúvida, equipara ao AT como Escritura normativa uma coleção de textos evangélicos destinados ao uso do culto, de modo tal que, em qualquer dos casos, começa a surgir, paralelamente ao AT, um novo cânone único para ser utilizado na leitura de Escritura durante o culto ³².

Quando Justino chega ao ponto de incluir o Apocalipse de João entre hemétera syngrámmata (Apol. 28.1), e de acrescentar ao testemunho de João em apokalypsei genoméne autô as palavras hóper kaì ho kyrios eîpen (Dial. 81.4), é sinal de que ele está claramente preparando o caminho para a avaliação normativa de uma "Escritura apostólica", ainda que ela não se situe no mesmo plano dos Evangelhos. As epístolas paulinas não são citadas por Justino, e ele não recorre a Paulo, embora não o ignore propositadamente ³³. Assim, um cânone bipartido entra em processo de evolução, caminhando paralelamente ao AT.

Bem pouco tempo antes disso, Marcião, que em sua permanência na Ásia Menor foi duramente atacado por haver rejeitado o AT, veio a Roma e, aí também, foi excluído da Igreja (cerca de 144 d.C.). Foi então que ele organizou sua própria igreja, e como se recusasse totalmente a aceitar o AT, deu à sua igreja uma nova Sagrada Escritura, formada por Lc e pelas dez epístolas de Paulo (sem as Epístolas Pastorais). Avisando tratar-se de uma restauração do texto original, Marcião reduziu consideravelmente o texto destes onze escritos, que ele encontrara no texto da tradição "ocidental". Além desses, ele alterou muitos textos partindo de uma perspectiva antijudaica. O texto de Marcião não foi conservado em sua totalidade, mas podemos reconstituí-lo parcialmente baseando-nos na polêmica dos Padres da Igreja ³⁴. O motivo por que Paulo era encarado exclusivamente como "o apóstolo" deve ser deduzido não só da atitude do próprio Marcião, mas também dos prólogos feitos para as epístolas de Paulo separadamente, os quais apareceram em sua igreja logo depois de sua morte. Além de abordar as circunstâncias da origem das epístolas, os prólogos destacam o ataque do apostolus contra os "falsos apóstolos", que ensinavam a Lei judaica. Já ficou definitivamente provado ³⁵ que os prólogos que serviam de introdução a Gl, a 1 e 2Cor, a Rm, a 1 e 2Ts, a Cl, a Fl e a Fm, que foram aproveitados pela grande Igreja e que se encontram em numerosos manuscritos da Vulgata, são de origem marcionita, explicando assim a sequencia das epístolas. Originariamente, a coleção incluía ainda mais um prólogo, o da Epístola aos efésios, que foi designado como a Epístola aos cristãos de Laodiceia, ao passo que os prólogos à Epístola aos efésios e às Epístolas Pastorais foram aduzidos por iniciativa da Igreja católica. O Cânone de Marcião que, segundo sua intenção teológica, se caracteriza pelos prólogos escritos um pouco mais tarde era indubitavelmente uma Sagrada Escritura dividida com precisão em duas partes.

Desde a época dos Padres da Igreja, pensou-se que Marcião houvesse elaborado seu código, extraindo-o de um cânone da Igreja mais amplo e abrangente ³⁶. Opondo-se a este ponto de vista, Harnack propôs a tese de que Marcião fora o primeiro a promover a idéia de uma nova Sagrada Escritura, bem como de sua divisão em duas partes, e de que a Igreja o seguira em ambos os aspectos ³⁶ᵃ.

João Knox foi bem além, afirmando que a Igreja, ao reagir contra o cânone de Marcião, se deixara persuadir a estabelecer o cânone dos quatro evangelhos para substituir um "evangelho" truncado, e a determinar a organização de uma coletânea que incluísse as treze epístolas paulinas e outros textos apostólicos, e que tomasse o lugar da coleção das dez epístolas paulinas ³⁷ feita por Marcião. No entanto, estas teses são muito questionáveis.

Por um lado, não se sabe se Marcião conheceu alguma coleção dos quatro evangelhos e das Epístolas Pastorais, e se por conseguinte, excluiu conscientemente alguns escritos de seu cânone. Por outro lado, o cânone dos quatro evangelhos já se achava em processo de evolução, e a autoridade dos escritos apostólicos começava a ser equiparada aos textos evangélicos, quando Marcião ofereceu à sua igreja o cânone em duas partes. A formação do cânone por Marcião, portanto, dificilmente teria propiciado a ocasião para a Igreja organizar o seu cânone, mas o fato de Marcião já haver estabelecido a autoridade canônica de Paulo certamente veio fortalecer esta tendência, já existente na Igreja, de avaliar os textos apostólicos situando-os no mesmo plano dos escritos evangélicos, e de delimitar explicitamente esta nova "Sagrada Escritura" ³⁷ᵃ. Este processo tornava-se ainda mais exigente e indispensável por causa da necessidade de acentuar, em oposição ao montanismo, a realização da Nova Aliança em Cristo e nos apóstolos ³⁸.

Por conseguinte, o cânone de Marcião não proporcionou à Igreja oportunidade para a formação de seu cânone, porém fez mais do que isso. E a Igreja adotou não só o texto marcionita em suas formas já estabelecidas (a doxologia de Rm) e os prólogos marcionitas das epístolas paulinas, mas também a "Epístola aos cristãos de Laodiceia", que teve origem na igreja marcionita. Esta epístola, que é encontrada em muitas das Bíblias latinas do século VI em diante, talvez já tivesse sido rejeitada como um texto forjado por Marcião, no Fragmento Muratoriano do fim do século II ³⁹.

Por outro lado, os prólogos de Mc, Lc e Jo ⁴⁰, que durante muito tempo foram encarados como introduções antimarcionitas ao evangelho quádruplo preparado pela igreja primitiva na segunda metade do século II ⁴¹, em oposição ao "evangelho" de Marcião, indubitavelmente não surgiram ao mesmo tempo, mas foram escritos isoladamente e numa época bem posterior, embora as circunstâncias relativas à sua origem não possam ser agora ser exatamente determinadas ⁴². De modo algum, porém, estes prólogos provam que a Igreja, na segunda metade do século II, tenha proposto conscientemente um cânone que se sobrepusesse ao cânone de Marcião, deixando-o na sombra.

Desde Justino até o fim do século II, para dizer a verdade, só possuímos informações insuficientes a respeito da evolução do cânone do NT. 

O apologista Taciano, nascido na Síria, discípulo de Justino, mais tarde chefe de uma seita ascética, introduz Jo 1,5 com a fórmula tò eireménon, que constitui a maneira formal de apresentar uma citação da Escritura ⁴³. Apesar desta visão sobre a autoridade deles, omitindo os paralelos e atenuando as discordâncias, Taciano construiu uma harmonia entre os evangelhos, usando quase que exclusivamente como fundamento os nossos quatro evangelhos: o Diatessaron, que esteve durante vários séculos em uso na igreja síria. A redação do Diatessaron confirma que já existia uma coleção dos quatro evangelhos, mesmo que o texto deles ainda não estivesse fixado de maneira definitiva. Taciano também usou as epístolas de Paulo, inclusive Hb, e diz-se que ele também os editou em boa forma linguística ⁴⁴, o que demonstra que conhecia o ponto de partida do NT bipartido.

Os gnósticos valentinianos conheceram e usaram os evangelhos da Igreja, e é do valentiniano Heráclio que provém o comentário mais antigo do quarto Evangelho. Eles também usaram as epístolas de Paulo, seguindo a prática da Igreja, embora não se encontre ente eles nenhuma referência à autoridade "canônica das escrituras do NT ⁴⁵.

O apologista Atenágoras(cerca do ano 180) cita tanto os textos evangélicos quanto o AT por meio da palavra phesí ⁴⁶, mas também designa Paulo com a fórmula katà tòn apóstolon ⁴⁷.

Enquanto que quase em toda parte, Paulo e os evangelhos são situados no mesmo plano, Teófilo de Antioquia (em fins do século II) cita Isaías, tò evangélion e o ho theios lógos (= Paulo), colocando-os um ao lado do outro, e designa Jo como "Sagrada Escritura" ⁴⁸. Mais ou menos na mesma época, o gnóstico Ptolomeu, em sua Carta a Flora ⁴⁹, cita o sotér juntamente com paûlos ho apóstolos.

Exatamente como ocorria no Oriente, onde as epístolas de Paulo eram colocadas no mesmo plano que o texto normativo dos evangelhos sem serem designadas como "Escritura", também no Ocidente um mártir da Sicília (no ano 188) responde à pergunta do procônsul: Quae sunt res in capsa vestra? ("Que trazes em tua maleta?"), com as seguintes palavras: Libri et epistulae Pauli viri iusti ("Livros e epístolas de Paulo dirigidos a um homem justo") ⁵⁰. Desta maneira, ele mostra claramente que os evangelhos eram considerados, juntamente com o AT, como "os Livros", mas que as epístolas de Paulo, apesar de possuírem igual valor para finalidades práticas, ainda não tinham conquistado realmente a mesma posição.

Que um novo cânone bipartido se achava em franco desenvolvimento no fim do século II é algo que se percebe também pelo fato de que na carta às igrejas de Viena e Lião, desde o ano 177, o Ap é citado como graphé ⁵¹. E, quando Melitão de Sardes (c. 180) publicou uma lista dos livros tês palaiâs diathékes ⁵², esta designação implica e contrario que o conceito de um "NT" está em fase de formação.

Não se pode duvidar de que o antimontanista que escreveu por volta de 192 ⁵³, queria exprimir com a designação de hó tês toû evangelíou kainês diathékes lógos uma coleção de escrituras que devim chamar-se kainê diathéke e da qual "nada se podia tirar, nem a ela acrescentar" ⁵⁴, mesmo quando, sem ambiguidades, recebe o nome de "o NT". Embora gradativamente se vá desenvolvendo a consciência de que existe uma nova norma escriturística, tal coleção não é em toda parte definida de igual maneira. Na verdade, em muitos lugares ainda estava faltando a consciência de que uma delimitação desse tipo era necessária.

Assim, por volta de 170, os antimontanistas, que eram chamados de "Alogoi", puderam retirar da coleção, presumivelmente conhecida, de escrituras da igreja Jo e Ap como obras supostamente atribuídas ao gnóstico Cerinto, sem com isso excluí-los do esquema da igreja ⁵⁵.

Por outro lado, o bispo Serapião de Antioquia (mais ou menos no ano 200) pode permitir a leitura do Evangelho de Pedro, mesmo sem que ele o conhecesse. Depois teve de retirar sua permissão quando soube que seu conteúdo era herético ⁵⁶. Por conseguinte, o círculo de textos permitidos da "Nova Aliança" ainda não se achava fechado.

É este o estado de coisas que encontramos entre os grandes Padres da Igreja no fim do século II e na lista canônica mais antiga que existe.

Ireneu, que conhecia as igrejas da Ásia Menor, de Roma e da Gália, enfatizava a autoridade dos evangélion tetrámorphon, isto é, os quatro evangelhos que foram oferecidos à igreja segundo a eterna ordem divina, e que não podiam ser nem mais e nem menos que isto. Assim como existem quatro partes do mundo, quatro pontos cardeais, quatro diathêkai divinas, existem também quatro evangelhos como as principais colunas da Igreja ⁵⁷. Este cânone dos quatro evangelhos foi aumentando com os Atos dos Apóstolos, que compartilhava da autoridade de Lc ⁵⁸. Além disso, as treze epístolas de Paulo - Ireneu é a nossa primeira testemunha que confirma este número das epístolas paulinas - gozavam de autoridade ilimitada, ao passo que a posição relativa a Hb, às epístolas católicas, e ao Ap, ainda não se achava fixada. Ireneu cita Hermas em conexão com Gn, Ml, Mt, Ef como graphé ⁵⁹. Por outro lado, porém, embora ele prezasse muitíssimo I Clem, provavelmente não a considerava "Sagrada Escritura" ⁶⁰. Mesmo em Ireneu não existe uma designação abrangente para o "o NT" ⁶¹.

Ao contrário disto, Tertuliano reconhece como um testemunho para a igreja da África totum instrumentum utriusque testamenti ("o instrumento completo de cada testamento"): ao lado da lex et prophetae figuram evangelicae et apostolicae littera ("os evangelhos e os escritos apostólicos"). Assim há um AT e um NT. O cânone dos evangelhos já se encontra fechado, mas o cânone dos escritos apostólicos ainda não.

Tertuliano confirma claramente ⁶² os quatro evangelhos e chama-os scripturae ⁶³ . Para ele, as trezes epístolas paulinas, os Atos dos Apóstolos, o Apocalipse, a Primeira Epístola de Pedro, a Epístola de Judas pertencem ao "Apóstolos". Não são mencionadas entre as epístolas católicas a Segunda e a Terceira Epístolas de João, a de Tiago e a Segunda de Pedro. Por outro lado ⁶⁴, ele cita Hb como sendo a Epístola de Barnabé e chama-a receptior apud ecclesias ("mais favoravelmente recebida entre as igrejas"). Na sua fase pré-montanista, ele considerou Hermas como scriptura, mas em De pud. rejeita-o como apocryphus.

Clemente de Alexandria conhece "os quatro evangelhos que nos foram legados" ⁶⁵ e, na segunda parte do cânone, ele tem quatorze epístolas paulinas (inclusive Hb), e, em seguida, At e Ap. Ele preparou exposições sobre 1Pd, 1Jo e Jd, mas é muito duvidoso aceitar-se, como Eusébio afirma ⁶⁶, que Clemente tenha explicado todas as epístolas católicas, a estas acrescentando a Epístola de Barnabé e o Apocalipse de Pedro. Seu NT, entretanto, é ainda mais abrangente. Dentre os evangelhos ele usa - embora não lhe atribuindo a mesma autoridade - o Evangelho dos hebreus e o Evangelho dos egípcios. Ele considera como Escritura apostólica, e portanto como inspirados, também o Apocalipse de Pedro, o Querigma de Pedro, Barnabé, I Clem, Didaché e Hermas; isto é, ele possui, "até certo ponto, um cânone ainda ´aberto`" ⁶⁷.

Os três grande teólogos do fim do século II, pois, reconhecem um NT que contém os quatro evangelhos e uma parte apostólica, à qual pertencem incontestavelmente as treze epístolas de Paulo, os Atos dos Apóstolos, a Primeira Epístola de Pedro, a Primeira Epístola de João e o Apocalipse, ao passo que a canonicidade de outras epístolas católicas e de Hb ainda não havia sido determinada, e ocasionalmente outras escrituras eram encaradas e abordadas como canônicas. O fato de esta situação haver encontrado acolhida na comunidade romana é comprovado pelo chamado Fragmento Muratoriano ou Cânone Muratoriano, descoberto em 1740 pelo bibliotecário L. A. Muratori, na Biblioteca Ambrosiana de Milão, num manuscrito do século VIII. O fragmento conserva, num latim nem sempre compreensível ⁶⁸, um texto que, quase com toda certeza, foi traduzido do grego para o latim vulgar. O princípio e possivelmente o fim também estão cortados. O autor desconhecido escreveu em fins do século II, na cidade de Roma ⁶⁹. É pouco provável que fosse Hipólito, o "bispo-adversário" romano ⁷⁰. Dificilmente tratar-se-ia aqui de um documento oficial romano ⁷¹, mas antes de uma lista autorizada dos textos que deviam ser "recebidos" pela Igreja católica e lidos em público, acrescentando-se a tal leitura uma recusa explícita em face de textos aos quais outros cristãos de dentro da Igreja ou hereges gostariam de atribuir igual valor.

O texto começa com as palavras que concluem o Evangelho de Marcos. O fragmento descreve Lc como o terceiro e Jo como o quarto Evangelho, donde se deduz que a menção de Mt como o primeiro Evangelho evidentemente foi retirada.

A informação referente a Mc e Lc mostra que o papel de testemunha ocular era altamente valorizado: assim, Marcos "estava presente quando algumas dessas coisas aconteceram, e narrou-as de acordo com o que viu", ao passo que Lucas "não vira o Senhor na carne", e, entretanto, procurou transmitir a mensagem segundo as informações que conseguiu obter. O quarto Evangelho foi escrito pelo discípulo João, a convite expresso e com a aprovação de seus companheiros, discípulos e bispos. As epístolas joaninas também atestam que João vira e ouvira o Senhor e, por isto, no seu Evangelho, ele apresenta todos os feitos do Senhor em uma ordem adequada. O autor do fragmento está consciente das diferenças que existem entre os evangelhos isolados, mas não dá a isto nenhuma importância para a fé, já que os fatos máximos na história do evangelho "são atestados pelo espírito único e dominante" (uno ac principali spiritu declarata sint). No caso dos Atos dos Apóstolos, o que há de mais importante é o sub praesentia eius [Lucas] singula gerebantur ("Aí acontecimentos singulares ocorreram na presença de Lucas"). Assim sendo, o conteúdo do livro está garantido. Lucas não repete a paixão de Pedro nem a viagem de Paulo desde Roma até a Espanha, porque ele não participou de tais experiências. Como as setes igrejas do Ap, as setes igrejas a quem Paulo escreve suas epístolas simbolizam para o autor a totalidade da igreja cristã, explicando deste modo o caráter definitivo das epístolas paulinas para toda a Igreja.

A luta de Paulo contra a heresia e a compreensão que ele tem do AT, e que demonstra em Rm, merecem ser realçadas como especialmente importantes. As quatro epístolas endereçadas a pessoas individuais, pessoas que se achavam ligadas ao Apóstolo de maneira particular (Fm, 1 e 2Tm, Tt), adquiriram importância canônica por causa das instruções relativas à disciplina da igreja que as mesmas contém. As epístolas paulinas espúrias, procedentes de círculos heréticos, tais como a Epístola aos cristãos de Laodicéia ou de Alexandria, entre outras, foram rejeitadas (in catholicam eccleisam recipi non potest); não se pode misturar fel com mel.

Nada se diz a respeito do fundamento para a aceitação das três epístolas católicas (a Epístola de Judas e as duas de João). Estranhamente, o Livro da Sabedoria está incluído na lista, juntamente com as epístolas católicas, como sendo um livro canônico.

Seguem-se depois dois apocalipses - o Apocalipse de João e o Apocalipse de Pedro -, embora o último traga um comentário suplementar: quam quidam ex nostris legi in ecclesia nolunt ("que alguns de nós não desejam que seja lido na igreja"). Por outro lado, o autor explica que Hermas também pode ser lido, porém não deveria ser lido publicamente na igreja para o povo (se publicare in ecclesia populo), porque não pertence nem ao cânone profético do AT, que se acha encerrado, nem aos escritos dos apóstolos que hão de perdurar até o fim dos tempos. Na verdade, o texto de Hermas fora escrito havia bem pouco tempo, em Roma, pelo irmão do bispo Pio. Finalmente, a lista menciona os escritos de Arsino, Valentino e Milcíades, e um livro de cânticos atribuído a Marcião. A propósito destes, porém, o fragmento diz: nihil in totum recipimus ("destes não recebemos absolutamente nada").

A lista de escrituras "que devem ser recebidas" concorda em essência, com a estabelecida pelos Padres ocidentais contemporâneos. É impressionante que 1Pd esteja faltando, mas a omissão de Hb, Tg e 3Jo não nos surpreende ⁷². Embora as falsas epístolas paulinas e o Pastor de Hermas estejam excluídos, o Apocalipse de Pedro é, não obstante, reconhecido (a inclusão do Livro da Sabedoria nesta coleção deve ser tomada simplesmente como um erro). O que há de mais importante é que aqui encontramos alguma coisa a propósito dos motivos para a exclusão e a inclusão de escrituras individuais.

Bem clara é a consciência de que, assim como o número dos escritos proféticos se acha encerrado e fixado, também os textos apostólicos precisam ser delimitados com precisão, e há necessidade de um novo cânone igualmente fechado.

O critério decisivo para incluir-se um texto não é o seu conteúdo, mas o fato de ter sido escrito por um apóstolo ⁷³. É por isso que os autores de Lc e Mc são tidos como autorizados: autorizados em virtude de haverem usufruído do relacionamento com um dos apóstolos, na qualidade de discípulo ⁷⁴. 

Os Atos dos Apóstolos, como livro, caracteriza-se pelo cunho de acta omnium apostolorum ("atos de todos os apóstolos"), enquanto o Pastor de Hermas é excluído porque sua origem posterior afasta a hipótese ou a possibilidade de ter ele sido escrito por um apóstolo.

Aliás, há um segundo motivo a favor da autoridade eclesiástica de uma escritura: o ser dirigida a toda a ecclesia catholica, o que acarreta algumas dificuldades para as epístolas paulinas. No entanto, o autor, triunfante, derruba tal objeção ao comparar as sete epístolas com as setes cartas do Ap ⁷⁵.

Já que o testemunho ocular direto é acentuado em Jo e At, e o testemunho ocular indireto em Lc (no caso de Marcos algo semelhante deve existir no texto), a intenção polêmica da lista tem de ser tomada em consideração: a conexão, certa e segura, das escrituras canônicas com a tradição apostólica deve ser colocada acima dos evangelhos apócrifos e dos Atos dos Apóstolos, e opor-se a estes.

A delimitação do cânone pela exclusão dos escritos não-apostólicos efetivou-se, pois, em fins do século II, mas apenas quanto aos evangelhos, porque a parte apostólica ainda continuava em fluxo.

A consequência prática de tais inclusão ou exclusão consistiu, antes de mais nada, na permissão ou proibição para o texto ser lido durante as assembléias de culto. Depois, como consequência disso e de modo secundário, com o passar do tempo, procedeu-se à outorga de aceitação ou de recusa diante dos escritos contidos em tais manuscritos e que se destinavam a ser usados durante o culto.

2 A Conclusão do Cânone do Novo Testamento na Igreja Antiga.

2.1 O Novo Testamento na Igreja grega desde Orígenes até o fim da Antiguidade

No contexto da história do cânone do NT, o grande alexandrino Orígenes (253/254) possui importância vital. Isso não foi conseqüência de ter ele participado ativamente no curso do desenvolvimento histórico do cânone, de modo a determinar um compasso significativamente diverso para o NT, confrontando-se com o que havia antes dele. Ele fez bem mais do que isso: seu serviço constitui em observar qual o costume, vigente em seu tempo, em relação às escrituras do NT, nas várias províncias da Igreja, e, com base nesta pesquisa, ele tirou cuidadosamente algumas conclusões. Seus estudos aprofundados, bem como os períodos em que residiu em diferentes cidades e países (Roma, Atenas, Antioquia, Arábia, Capadócia, Palestina) propiciaram-lhe um conhecimento geral e abrangente das práticas em uso nas várias igrejas. E ele, baseando-se no que viu e observou, emitiu seus julgamento a respeito da autoridade canônica das escrituras do NT. Por causa da grande consideração que Orígenes gozava, seus pontos de vista continuaram a exercer influência no período seguinte.

O mais importante foi que ele determinou, pela primeira vez, quais as escrituras que possuíam autoridade eclesiástica geral, e com este fundamento, pode-se deduzir com as diversas classes de textos eclesiásticos devia ser diferenciadas ¹.

1) Segundo ele, a primeira classe é a dos anantírreta ou dos homologoúmena ("aqueles que são incontestáveis na Igreja de Deus debaixo do céu"). A este grupo pertencem os quatro evangelhos, as treze epístolas de Paulo, 1Pd, 1Jo, At e Ap.

2) Os amphiballómena ( escritos duvidosos): 2Pd, 2 e 3Jo, Hb, além de Tg ² e de Jd³. Embora ele cite o Pastor de Hermas e a Didaché como graphé, não parece tê-los incluído no cânone, apesar de inserir Barnabé na lista do NT ⁴.

3) Os pseudé: o Evangelho dos egípcios, o Evangelho de Tomé, o Evangelho dos basilidas, o Evangelho de Matias, que são rejeitados como falsificações heréticas.

No quadro geral fica evidente que, para Orígenes, bem como para seu predecessor Clemente, o uso das escrituras pela igreja em Alexandria seguia uma mentalidade muito mais aberta do que em qualquer outro lugar. Entretanto, o critério para a distinção entre homologoúmena e amphiballómena consiste no reconhecimento ou na rejeição de uma escritura pela maioria das igrejas, cujo julgamento contrabalança a incerteza em face de problemas individuais de autoria ⁵. Portanto, os limites d cânone ainda não se acham fixados, e, ao se apelar para a decisão de uma maioria sobre um assunto que, em última análise, constitui um problema histórico, a decisão nos casos individuais continua pendente no ar (principalmente no que se refere a Hb e ao Ap), e textos que mais tarde viriam a ser excluídos ainda permanecem aqui ou acolá, encarados como canônicos.

Percebe-se isto claramente por causa de uma outra evidência que remonta ao século III. Existe um índice do número de linhas dos escritos bíblicos, feito em latim e inserido no Codex Claromontanus (D) das epístolas de Paulo entre Fm e Hb ⁶. É quase certo que ele tenha sido traduzido do grego e que provenha do século III ⁷. Nesta lista, estão enumerados os quatro evangelhos, as treze epístolas de Paulo (faltam Fl, 1 e 2Ts, aparentemente por descuido), as sete epístolas católicas, Ap, At. Hb, que Orígenes atribuía a Paulo só indiretamente, também não está incluída. No elenco de Orígenes, são mencionados, como partes do NT, Barnabé ⁸, o Pastor de Hermas, os Atos de Paulo, o Apocalipse de Pedro. Mas o gosto exagerado pelos apocalipses, que aí se mostra com evidência, ficou bastante abalado quando Dionísio de Alexandria em sua obra sobre as Promessas ⁹ mostrou com bases linguística e estilística, e com indicações conceptuais, que o Ap podia não ter sido escrito pelo autor de Jo e de 1Jo. Embora o próprio Dionísio não ousasse rejeitar o livro, porque "muitos irmãos lhe atribuíam altíssimo valor", com base nesta crítica a autoridade canônica do Ap no Oriente estava abalada.

Ao mesmo tempo que nesses testemunhos do século III ainda se evidencia uma incerteza relativa à autoridade canônica de Hb e do Ap, algumas das epístolas católicas e de uns poucos escritos que finalmente não foram incluídos no cânone, prossegue a evolução que vai terminar num ponto de vista fixo a propósito dos limites do cânone do NT.

Metódio de Olimpo, que se opunha a Orígenes na Ásia Menor, cita todas as escrituras do NT como canônicas, mas também inclui no seu rol o Apocalipse de Pedro, e talvez Barnabé e a Didaché. E o Papiro 72, do século III, contém a Epístola de Judas e as duas Epístolas de Pedro, designando especificamente a segunda dessas cartas como "a segunda epístola"; presume-se, assim, que ele reconheça todos esses três textos como partes integrantes do NT.

Esta incerteza referente aos limites da parte apostólica do NT é claramente notada durante a longa discussão que Eusébio de Cesaréia dedica ao NT na sua História da Igreja. Ele distingue ¹⁰ três tipos ou classes de escrituras: 1)homologoumena, 2)antilegomena, e 3) completamente destituídas de sentido e impiedosas (átopa pánte kaì dussebê) cogitações de hereges que se desviaram da verdadeira fé.

Para ele, os homologoumena são os quatro evangelhos, os Atos dos Apóstolos, as quatorze epístolas de Paulo (inclusive Hb), 1 Pd, 1Jo e, "se se quiser" (eí ge phaneín) Ap. Entre os antilegomena ele destaca dois grupos: escritos que merecem maior ou menos estima. Chama o primeiro grupo de "antilegomena que agora, porém, já são reconhecidos pela maioria". São eles: a Epístola de Tiago, a de Judas, a Segunda Epístola de Pedro, a Segunda e a Terceira Epístolas de João. Ao segundo grupo pertencem os nótha, a obra espúria intitulada Atos de Paulo, o Apocalipse de Pedro, o Pastor de Hermas, Barnabé, a Didaché, e ei phaneín Ap. Como ele diz, há alguns que inserem neste grupo o Evangelho dos hebreus, usado pelos cristãos judeus.

O estranho fato de o Ap ter sido primeiro incluído entre os homologoumena, e depois colocado entre os antilegomena inautênticos, deve ser explicado pela rejeição, amplamente difundida, da origem apostólica do Ap, desde os tempo de Dionísio de Alexandria em diante, ao passo que a tradição da igreja primitiva e Orígenes haviam reconhecido o livro como canônico.

Esta classificação escolástica, porém, não dá uma imagem completa do estado de ciosas na época de Eusébio. Em larga escala, a Igreja grega do tempo dele conhecia as sete epístolas católicas, como o próprio Eusébio afirma ¹¹. Por isso, para ele pouco importava que os homologoumena e o primeiro grupo de antilegomena estivessem agrupados juntos, porque assim o NT ficava estruturado de acordo com o seu sentido atual. Embora o número sete para as epístolas católicas geralmente não fosse reconhecido no seu tempo, o nome "Epístolas Católicas" para ele era familiar. Talvez houvesse até uma sequência definida de tais epístolas: Iákobon, hoû he próte tôn honomazoménon katholikôn epistolôn eînai légetai ¹². Mas a autoridade das quatro pequenas Epístolas Católicas, nos dias dele, não se achava universalmente fixada, e sobretudo o Ap ainda era discutido.

Em Cirilo de Jerusalém (c. 350), no quinquagésimo nono (ou sexagésimo) cânone do Sínodo de Laodicéia (depois de 360), e em Gregório Nazianzeno († 390), encontramos listas com vinte e seis livros elaboradas no século IV (isto é, sem Ap). Anfilóquio de Icônio († depois de 394) também concede que Ap seja amplamente declarado como inautêntico. Por outro lado, Epifânio, bispo de Chipre († 403), menciona o Ap como o último livro do NT.

Enquanto que a autoridade canônica de algumas das epístolas católicas e do Ap continuava sendo contestada, outras escrituras também continuavam a ser tratadas como parte do N, as quais finalmente não foram reconhecidas como canônicas: o Codex Sinaiticus continha, depois do Ap, Barnabé e Hermas; o Codex Alexandrinus incluía I e II Clem; e o documento Sobre a Virgindade, que foi escrito no Egito durante o século I e falsamente atribuído a Atanásio, cita a Didaché como graphé.

Esta incerteza referente aos limites do cânone do NT terminou para a Igreja no Oriente por ocasião da trigésima nona carta comemorativa da Páscoa, escrita por Atanásio no ano 367 ¹³, a qual chegou até nós quase completamente preservada na versão grega, siríaca e copta. Nesta carta pastoral, Atanásio pela primeira vez apresentou um cânon do AT e do NT firmemente circunscrito, dentro do qual eram definidas as classes individuais dos textos e de sua sequência. Ele designou os vinte e sete livros de nosso NT como sendo os únicos realmente canônicos. São eles: nossos quatro evangelhos, seguidos dos Atos dos Apóstolos e das sete epístolas católicas (Tg, 1 e 2Pd, 1, 2 e 3Jo, Jd), e depois das quatorze epístolas paulinas (Hb, depois de 2Ts e antes das Pastorais e de Fm), e Ap. Ninguém pode acrescentar mais nada a esse número, bem como ninguém pode retirar coisa alguma. Além dos textos canônicos (kanonizómena) e dos rejeitados pela Igreja (apókripha), ele menciona uma terceira classe, a dos livros que deviam ser lidos em voz alta (anaginoskómena), que podem ser usados pela Igreja na instrução batismal. São os seguintes: (além do Livro da Sabedoria, Sirácida, Ester, Judite, e Tobias) Didaché (por causa dos Dois Caminhos, capítulos 1-6) e o Pastor de Hermas (por causa dos Mandata). Atanásio foi também o primeiro a denominar esta coleção eclesiasticamente fixada de kanón das Sagradas Escrituras ¹⁴. 

A autoridade de Atanásio era tão grande que, na igreja grega, a canonicidade das sete epístolas católicas foi rapidamente estabelecida. Por outro lado, a posição em face do Ap permaneceu geralmente dividida. Crisóstomo e Teodoreto, os grandes mestres da escola antioquena, eram contra o Apocalipse, como o eram também os três capadócios gregos. 

O Concílio Quinisexto (692) organizou uma lista canônica do NT incluindo o Ap, e outra excluindo-o. E uma lista de escrituras proveniente do século IX ¹⁵ ainda não insere o Ap explicitamente entre os livros do NT. Dos manuscritos gregos do NT que sobreviveram até os últimos tempos bizantinos, somente poucos continham o Ap, e a maioria dos manuscritos gregos do Ap apresentam o seu texto ou como parte de um comentário ou junto com escritos não-bíblicos. Somente depois do século X e XI é que este quadro começou a ser alterado ¹⁶. Pode-se dizer que o número de vinte e sete textos canônicos do NT na Igreja grega finalmente prevaleceu, pela primeira vez, no século X

2.2 O Novo Testamento na Igreja latina desde Cipriano até o século V

Contrastando com o quadro que acabamos de esboçar, na Igreja latina a determinação do cânone ocorreu cedo e foi logo definitiva.

Como a autoridade apostólica do Ap já havia sido confirmada pelo Cânone Muratoriano, depois disto praticamente ela não foi mais contestada. A partir do século III aconteceu apenas, ocasionalmente, serem citados como canônicos outros apocalipses. Em compensação, no Ocidente, Hb e cinco das epístolas católicas foram por longo tempo desconhecidas ou discutidas. 

Novaciano de Roma (c. 250), em acréscimo aos evangelhos, aos Atos dos apóstolos e às treze Epístolas de Paulo, citava apenas 1Jo e o Ap como Escritura.

Através de Cipriano († 258), podemos discernir qual fosse a situação na África do Norte mais ou menos na metade do século III, porque ele insere muitas referências bíblicas nos seus Testimonia. Das epístolas católicas somente 1Jo e 1Pd são citadas. Hb nunca aparece, mas, por outro lado, o Ap é visto como Sagrada Escritura. 

Na Igreja Latina, ninguém, a não ser Eusébio, pode ser apontado como tendo tomado a iniciativa de pôr em ordem a história do cânone. Em seu conjunto, a formação do cânone processou-se de maneira mais simples, o que correspondia a um sentido, mais fortemente marcante, de lei e de ordem na igreja. Gradativamente, a literatura teológica grega foi conquistando maior influência no Ocidente, como se percebe principalmente através de Jerônimo, que contribuiu fundamentalmente para o abandono e o esquecimento da distinção entre os cânones ocidental e oriental. Graças a ele, o papa Dâmaso estabeleceu o cânone romano, e Atanásio também trabalhou no mesmo sentido, durante seus vários períodos de permanência em Roma e em outras cidades do Ocidente.

Particularmente sensível é a influência da Igreja grega sobre a decisão tomada no Ocidente a respeito de Hb. A epístola, na Igreja latina, foi primeiro considerada não-paulina. Tertuliano atribuiu-a a Barnabé. O cristão romano, cognominado Ambrosiaster, que por volta do ano 370 escreveu um comentário sobre as epístolas paulinas, limitou-se a treze epístolas, excluindo portanto Hb, fazendo o mesmo que Pelágio em seu comentário sobre as epístolas de Paulo, comentário escrito em Roma c. 400. Ambos, porém, conhecem Hb e citam-na como Escritura, mas não como texto paulino.

Depois do Cânone Muratoriano, o primeiro testemunho latino seguro sobre um cânone, um cânone africano oriundo dos não 360 e chamado Cânone de Mommsen por causa do seu editor ¹⁷, menciona os quatro Evangelhos, as treze epístolas paulinas, os Atos dos Apóstolos, o Apocalipse e, em seguida, Epistulae Johannis III (una sola), Epistulae Petri II (una sola): isto é, "três Epístolas de João (somente uma); duas Epístolas de Pedro (somente uma)". Apenas um dos dois manuscritos mediante os quais o cânone é conhecido possui as palavras entre parênteses - una sola - nos dois lugares. Parece tratar-se de uma correção posterior, cuja fonte original desejava que somente uma epístola de João e uma epístola de Pedro fossem reconhecidas. Por outro lado aí faltam completamente Hb, Tg e Jd.

Na segunda metade do século IV, porém, a influência do Oriente tornou-se notável. Hilário de Poitiers († 367), que foi exilado durante vários anos para a Ásia Menor, cita Hb, Tg e 2Pd como escritos apostólicos. Lúcifer de Cagliari († 370/71), que também foi banido para o Oriente, tinha o mesmo ponto de vista em relação a Hb, Jd e 2Pd. E Jerônimo, qu durante sua permanência em Roma (382-385) já usara o modelo de Atanásio para o NT, na revisão que fez do NT em latim, depois que se mudou para o Oriente, descreveu expressamente tal modelo canônico numa carta ¹⁸, embora não haja ocultado sua dúvida sobre a autoria paulina de Hb. No seu catálogo literário (De viris illustribus, 392), ele reuniu as informações que conhecia a propósito das dúvidas existentes sobre a origem apostólica de 2Pd, Tg, Jd, Hb e Ap. E foi assim que tais dúvidas foram transmitidas à Idade Média.

É possível, ainda que discutível, que já em 382 um sínodo romano, sob a influência romano, sob a influência de Jerônimo, tenha proclamado, com o apoio do papa Dâmaso, o cânone de Atanásio como cânone do NT a ser adotado pela igreja romana ¹⁹. É certo, porém, que em 405 o papa Inocêncio I, respondendo a uma questão proposta pelos bispos gauleses sobre o cânone romano, citou o cânone de Atanásio com quatorze epístolas paulinas e sete epístolas católicas ²⁰.

Indubitavelmente, foi sob a influência de Jerônimo que não só Agostinho adotou o cânone de Atanásio ²¹, mas até mesmo antes desta época um sínodo africano de Hippo Regius (393) ²² determinou idêntica extensão para o cânone, e fê-lo mediante a fórmula: Pauli Apostoli epistulae tredecim. Eiusdem ad Hebraeos una ("pelo apóstolo Paulo treze epístolas; do mesmo, uma aos hebreus"), e, antes de um novo sínodo do ano de 419 já se lia: Pauli apostoli epistulae quatuordecim ("quatorze epístolas do apóstolo Paulo")!

Com estas decisões das igrejas romana e africana, o problema do cânone no Ocidente ficou finalmente encerrado. A prática não coincidiu imediatamente com esta decisão: Hb durante muito tempo vez por outra faltava nos manuscritos bíblicos ²³.

Por volta da metade do século VI, Cassiodoro ainda não conhecia nenhum comentário latino de Hb. Mas, por outro lado, até o fim da Idade Média a epístola apócrifa de Paulo aos cristãos de Laodicéia é encontrada entre os manuscritos da Vulgata. Estas variantes e alternativas, porém, não põem em dúvida o fato de que, a partir do início do século V, já se achava firmemente fixada a extensão do NT para a Igreja latina. 

2.3 O Novo Testamento nas igrejas nacionais orientais

Desviando-se do curso dos acontecimentos nas igrejas grega e latina, a história do cânone na igreja nacional síria teve uma evolução diferente. O centro desta igreja achava-se nas terras banhadas pelo Eufrates. Em Edessa, capital do principado de Osroene, o cristianismo estabelecera um núcleo no último terço do século II. A Doctrina Addai, uma lenda síria do início do século V, narra que o fundador da igreja em Edessa, em seu discurso de despedida, dera instruções a seu sucessor Aggai no sentido de que, além do AT, só podiam ser lidos nas igrejas o Evangelho, as epístolas de Paulo, e os Atos dos Apóstolos, que continham as verdades divinas ²⁴. O cânone original dos sírios é, portanto, muito mais limitado do que o dos gregos e o dos latinos: em vez dos quatro evangelhos, usava-se o Diatessaron, e excluíam-se as epístolas católicas e o Apocalipse. Por influência grega, Hb passou a ser considerada como texto paulino, mas, em contrapartida, a Epístola a Filêmon foi encarada como não-paulina, e, por isso, rejeitada ²⁵. Em lugar desta, os Padres sírios do século IV citam como canônicas uma Terceira Epístola aos coríntios, juntamente com a Epístola dos coríntios e um trecho de uma narrativa de conexão ²⁶.

Proveniente do período próximo ao ano 400, foi preservada uma lista do cânone siríaco ²⁷, que dos textos do NT também só menciona os evangelhos, os Atos dos Apóstolos e as epístolas paulinas. Depois de Fm, a última epístola paulina, ele faz a seguinte observação: " O Apostolos completo [consiste de] 5,076 stichoi", isto é, as epístolas paulinas (inclusive Fm, mas sem 3Cor) formam, com os Atos dos Apóstolos, o Apostolos completo. Esta lista canônica até hoje apresenta os quatro evangelhos, embora a Doctrina Addai (ver acima), Afraates e Efrém (ambos do século IV) atestem o uso do Diatessaron na igreja, como o afirma Eusébio ²⁸. E Teodoreto, bispo de Cirros às margens do Eufrates († c. 466), recolheu e pôs de lado em sua diocese mais de 200 cópias do Diatessaron , e introduziu em seu lugar os quatro evangelhos ²⁹.

Igualmente, o bispo Rábula de Edessa († 336) instruiu seus sacerdotes para que tomassem cuidado e estivessem atentos a fim de que, em todas as igrejas, prevalecessem e fossem lidos os quatro evangelhos "separados". Entretanto, iniciativas deste tipo por parte dos bispos não bastariam para afastar inteiramente o Diatessaron , o qual havia sido altamente valorizado, durante muito tempo, sobretudo entre os nestorianos, embora eles também tivessem a Peshitta como a Bíblia de sua igreja, e dentro dela os quatro evangelhos. 

No princípio do século V, mediante um esforço cooperativos dos bispados, formou-se a Bíblia da igreja síria, a chamada Peshitta. Ela representa uma acomodação do cânone dos sírios com o dos gregos. À frente de todos os textos estão os quatro evangelhos, 3Cor é rejeitada; há quatorze epístolas paulinas, inclusive Hb, seguidas de três epístolas católicas: Tg, 1Pd e 1Jo; os outros escritos, como o Ap, são excluídos. Deste modo, o cânone contém vinte e dois textos. Para uma grande parte da igreja síria isso representou o encerramento do cânone, porque, depois disso, não ocorreu mais nenhuma acomodação ou adaptação ao cânone grego. Aliás, nem houve oportunidade para isso acontecer pois que, depois do Sínodo de Éfeso (431), os sírios orientais se separaram da Igreja-mãe como nestorianos. Por outro lado, entre os sírios monofisistas do Ocidente, que mantinham estreitas relações com as igrejas vizinhas, ocorreu posteriormente uma adaptação ao cânone dos gregos.

A revisão autorizada em 508 pelo bispo Filoxeno de Mabbug - isto é, a nova tradução do NT chamada "filoxeniana" - e sua reelaboração, feita por Tomás de Harkel, no ano de 616, também incluía 2 e 3Jo, 2Pd, Jd e Ap.

Nos séculos V e VI, Tg e as quatro epístolas católicas menores ainda não eram consideradas canônicas em todas as igrejas sírias do Ocidente, e o Ap, somente através de um processo muito lento, conseguiu o reconhecimento eclesiástico na Síria.

No entanto, nas igrejas dos coptas e dos etíopes, que eram igualmente monofisistas, foram acrescentadas outras escrituras ao cânone de Atanásio: entre os coptas, I e II Clem e os oito livros das Constituições Apostólicas; entre os etíopes, além destas mesmas escrituras, ainda outras apócrifas ³⁰.

3 O Cânone da Igreja Ocidental até à Reforma

Problema teológico do Cânone

Para a Igreja Católica da Idade Média não houve problemas quanto à extensão do NT. O cânone do NT da igreja antiga, que fora aceito e adotado, gozava de autoridade indiscutível. Mesmo quando Tomás de Aquino († 1340) discutiram a questão, tentando verificar se Hb ocupava um lugar justo no cânone, isto ocorreu exatamente com o intuito de defender a autoridade canônica. E, quando se deu a união com os jacobitas sírios do Ocidente no Concílio de Florença em 1442, o cânone de Atanásio mais uma vez foi confirmado como indiscutível ¹.

Embora, baseados em comentários de Jerônimo, os humanistas recorressem à crítica histórica ao estudarem Hb, algumas das Epístolas Católicas e o Ap (Erasmo, Caetano), ninguém ousava discutir seriamente a canonicidade delas.

O Concílio de Trento ² declarou que toda a Bíblia do Antigo e do Novo Testamentos era canônica, tal como se encontrava na Vulgata, e enumerou todos os livros separadamente, citando entre eles Hb como a décima quarta epístola de Paulo, e Tg como uma epístola do apóstolo Tiago. O Concílio declarou que todas as partes do todo possuíam igual valor. Ao mesmo tempo, entretanto, pediu que fossem recebidas sine scripto traditiones pari pietatis affectu ac reverentia ("as tradições não-escritas com idêntica afeição piedosa e reverência").

Apesar das objeções que os reformadores levantaram contra livros isolados, as igrejas protestantes também confirmaram o cânone do NT segundo os limites recebidos da igreja antiga.

Para Lutero (em Prefácios ao NT em alemão, 1522) ³ o que é apostólico é canônico. Ele entende, porém, a expressão "apostólico" com um duplo sentido: "dos tempos apostólicos" é o que os apóstolos escreveram; "de outros tempos" é o que traz em si o cunho apostólico, ainda que não tenha sido escrito pelos apóstolos. "A pedra de toque adequada, mediante a qual se descobre o que possa haver de errado em todos os livros, consiste em verificar se eles tratam ou não do Cristo. O que não ensina Cristo não é apostólico, mesmo que seja Pedro ou Paulo que o ensine. Por outro lado, tudo aquilo que prega Cristo é apostólico, mesmo que seja pregado por alguém como Judas, Anás, Pilatos ou Herodes" (Prefácio da Epístola de Tiago). Apoiado neste ponto de vista, Lutero colocou no fim do NT quatro dos sete textos, discutidos na antiguidade e pelos humanistas (Hb, Tg, Jd e Ap), e não os enumerou juntamente com os livros restantes. Deste modo, mostrou claramente que estes quatro livros, que "nos tempos primitivos tinham sido apreciados de maneira diferente", ele não os incluíra entre "os principais livros do NT realmente certos", porque somente o último me apresenta Cristo como nitidez e pureza". A mistura de crítica teológica com questões históricas relativas à autoria contribuiu para que Lutero mudasse de atitude, paulatinamente, com o passar do tempo, e, desde o princípio, ele enfatizou explicitamente que não queria forçar ninguém a aceitar seu ponto de vista pessoal.

Se a extensão do cânone não foi de forma alguma alterada pela crítica teológica, a questão fundamental sobre a justificativa teológica dos limites do cânone, tais como a igreja primitiva os estabeleceu, não deixou, porém, de ser suscitada, embora por algum tempo tenha ficado de lado. Atribuiu-se pouquíssimo significado prático à distinção, do ponto de vista histórico, entre escritos "canônicos" e "apócrifos", ou "protocanônicos" e "deuterocanônicos" , do NT, em meio aos teólogos luteranos no período que vai de J. Brenz até L. Hutter. Tais conceitos foram expressamente combatidos por J. Gerhard e depois abandonados, ao passo que, na igreja reformada, as mesmas distinções jamais vieram à tona. A colocação de Hb Tg, Jd e Ap no fim da edição da Bíblia de Lutero sobreviveu aos temos da Reforma - não, porém, em todas as outras traduções da Reforma! - , e, nos textos confessionais reformados, existe uma diferença na classificação de Hb: a Confessio Belga (1561) apresentou-a como a décima quarta epístola paulina, enquanto que a Confessio Gallicana (1559) e a Confissão de Westminster (1647) a incluem entre as epístolas católicas. Mas em parte alguma o conteúdo do NT foi alterado.

Embora a história externa do cânone do NT já estivesse alcançado seu termo, a partir da teologia iluminista, a justificativa dessa limitação eclesiástica do cânone e a força obrigatória do mesmo tornaram-se um problema para a teologia protestante. J. S. Semler ⁴ foi o primeiro a salientar o fato de que a delimitação do cânone na igreja antiga só ocorreu "em relação aos clérigos", e de que "estes não ousaram servir-se de quaisquer outros livros para a leitura pública e a instrução obrigatória". Daí concluía ele que a investigação do cânone e a pesquisa sobre ele permanecem completamente abertas para "todos os leitores atentos e profundos".

Para os leitores cristãos o fato de um texto pertencer ao cânone não constitui critério para a avaliação. "A única evidência plenamente satisfatória para um leitor sincero reside na íntima convicção despertada pelas verdades que se encontram na Sagrada Escritura (não, porém, em todas as partes, nem em livros isolados)". Dentro desta visão, a pesquisa estritamente histórica sobre a origem dos textos do NT considerados separadamente, bem como sobre a coleção como um todo, foi reconhecida como uma tarefa teológica que os estudiosos, a partir de então e por muito tempo, erradamente tentaram levar avante, quer por meio da crítica histórica do cânone mediante a verificação da origem apostólica de cada uma de suas partes (J. D. Michaelis, F. C. Baur), quer como defesa histórica do cânone através da comprovação das origens apostólicas de tais escritos (Teodoro Zahn). Esta abordagem, tanto da discussão histórica quanto da defesa da adequação dos limites do cânone estabelecidos pela igreja antiga, era errada porque a exatidão ao fixar-se a autoridade canônica de algumas escrituras, para tanto excluindo-se outras, não pode ser historicamente verificada, e, deste modo, a conseqüência deste falso enfoque acabava sendo ou o pedido para se abandonar completamente o conceito dogmático do cânone ⁵, ou o esforço para provar a unidade plena e o igual valor das escrituras do NT ⁶. Contudo, estas conclusões erradas mostram que a história do cânone expõe as circunstâncias históricas e os motivos relativos ao aparecimento e à fixação do cânone, mas não pode tomar nem apresentar ma decisão concernente à necessidade substantiva de formar o cânone e à justificativa sobre os seus limites.

Esta visão, vigente desde o tempo de Semler, introduzida na evolução histórica, e observada na vacilação, ao longo dos séculos, sobre os limites do cânone, foi que levou a uma consideração mais acurada da razoabilidade e do valor de tal formação do cânone.

A história do cânone mostra que o cânone em duas partes, composto dos evangelhos e dos escritos apostólicos, se formara espontaneamente durante o século II, no seio da vida da Igreja. No entanto, a limitação do cânone que fixava o número dos evangelhos em quatro e, sobretudo, a parte dos Apostolos que vai além das epístolas , era transmitida pela Igreja segundo fundamentos consciente definidos e com a exclusão de outros pontos de vista. Assim, é bem verdade que, nas decisões da Igreja a respeito dos limites definitivos do cânone, as experiências espirituais das igrejas, quanto ao uso de certas escrituras em conexão com o culto, desempenharam o seu papel ⁷. Mas não é verdadeira a asserção, tantas vezes repetida, de que a Igreja só determinou como canônicas as escrituras que já se havia estabelecido como tais e que, por conseguinte, já eram canônicas ⁸.

Da metade do século IV em diante, por meio de suas decisões oficiais, a Igreja chegou a determinar que uma parte das escrituras do NT, que haviam sido reconhecidas aqui ou ali como canônicas desde o fim do século II, mas cujo valor canônico tinha sido rejeitado num lugar ou noutro, deviam realmente ser encaradas como canônicas ⁹. Durante o século II, o cânone do NT assumiu o seu lugar ao lado do AT, que já se achava mais amplamente reconhecido como Sagrada Escritura, porque, logo desde o princípio, os fundamentos que a Igreja adotou foram o testemunho e a pregação do ato redentor escatológico supremo de Deus em Jesus Cristo. Como resultado da morte da geração das testemunhas oculares e daqueles que as tinham ouvido, tal testemunho e tal pregação precisaram assumir uma forma escrita, a fim de se proteger contra o desaparecimento ou a deturpação, e, com isto, o cânone do NT, como garantia do primitivo testemunho de Cristo, teria de limitar-se aos textos provenientes da época do cristianismo primitivo, muito embora esses limites cronológicos não pudessem ser rigorosamente determinados ¹⁰.

Daí, porém, resultou uma dupla consciência:

a) Foi fundamentalmente necessário que o cânone ficasse encerrado. Ele não poderia relativizado pela justaposição, igualmente justificável, da regra apostólica de fé ¹¹, ou pela superimposição do sensus quam tenuit et tennet sancta mater ecclesia ("o sentido que foi e que é sustentado pela santa madre-igreja) ¹².

b) Precisa-se admitir a possibilidade de que, até essa altura, não haja entrado a imaginação, de que os escritos cristãos primitivos recentemente encontrados deviam ser acrescentado ao cânone tal como foram transmitidos, o que requer de nós considerarmos que, na determinação definitiva do cânone, o fator cronológico já não desempenhou um papel decisivo: Hermas foi excluído do Cânone Muratoriano com o apoio de fundamentos cronológicos, mas I Clem, apesar de sua proveniência localizada no primeiro século, não foi incluída. O problema da concordância substancial com os principais testemunhos do NT, num caso assim, não poderia deixar de ser levado em consideração, independentemente de se saber como possa haver hoje um acordo ecumênico diante de tal expansão do NT.

O problema oposto, relativo à justificativa e à manutenção da autoridade dos limites do cânone tal como foi estabelecido pela Igreja no século IV, por sua vez não constitui uma questão meramente teórica. O ponto de vista de que os limites do cânone são inatacáveis, porque a Sagrada Escritura "tem o próprio Deus como sua origem real e seu autor", dado que garante ¹³ "a incondicional inerrância de todas as suas partes", constitui, diante das indiscutíveis contradições entre os dois Testamentos, e mesmo dentro do NT, um elemento tão insustentável quando o "dote dogmático por si só evidente" de que "o verdadeiro NT é o NT todo" ¹⁴. Pelo contrário, as decisões da igreja antiga concernentes aos limites do cânone, as quais, na maioria dos casos, tratam da questão da apostolicidade ¹⁵, estão fundamentalmente precisando ser reexaminadas ¹⁶, e o critério da apostolicidade demonstrou por si mesmo ser histórica e dogmaticamente inútil ¹⁷.

"Como muitas vezes já se disse, está bem de acordo com a historia do cânone a afirmação de que a necessidade de sua forma não pode ser provada abstratamente. O cânone é, antes e essencialmente, muito mais uma realidade factual do que a realização de um conceito teológico" ¹⁸. De acordo co a limitação do cânone estabelecida pela igreja antiga, a qual em algumas partes só se mantinha com bastante hesitação, e cujo reconhecimento na igreja antiga nunca representou um problema de ortodoxia, não pode ser encarada como incondicionalmente obrigatória: o cânone "nunca foi ... encerrado sem ambiguidades", e "a absolutização dos limites do cânone constituíram a absolutização de um elemento da tradição" ¹⁹. Foi com razão, portanto, que os textos confessionais luteranos jamais estabeleceram os limites do cânone.

Apesar de tudo isso, porém, com base em dois fundamentos não pode haver para nós nenhuma possibilidade séria de progresso em face da decisão da igreja antiga sobre a extensão do cânone, por meio da exclusão de escrituras isoladas.

1) A questão desenvolveu-se graças à discussão ocorrida dentro da igreja antiga e durante o período da Reforma, e que se interessava por saber se os escritos cuja canonicidade fora longamente discutida não deviam ser algo excluídos ²⁰, acabou abandonada não só por causa do problema da origem "apostólica", que havia sido levando injusta e inadequadamente apenas em relação a tais escritos, mas sobretudo porque, também nos textos cuja autoridade canônica nunca foi seriamente contestada, existem partes que evidenciam contradição direta à mensagem central do NT. Deste modo, com fundamentos históricos, não é possível, mediante a exclusão de algumas escrituras, fixar os limites para um NT que, de maneira uniforme e em todas as suas partes, constitua um testemunho adequado da mensagem apostólica relativa ao Cristo.

2) O que há de ainda mais importante, porém, é o fato de que uma nova delimitação do cânone do NT brotaria de uma incompreensão da essência do cânone do NT. Lutero avaliou os livros do NT de acordo com o grau em que eles "nos mostram o Cristo e nos ensinam tudo o que é necessário e abençoado para o nosso conhecimento". Mas, paralelamente a esta afirmação, ele também colocou uma advertência: "Tenham cuidado, porém, para não ver um Moisés no Cristo, nem fazer do evangelho uma lei ou um livro" ²¹. Assim, Lutero reconhecia que os livros do NT só são canônicos no sentido pleno na medida em que tornam audível o testemunho do ato histórico da redenção de Deus em Cristo, de modo tal eu ele possa ser promulgado pela pregação. Isto significa que o texto realmente canônico só pode ser reconhecido pela audição crítica das vozes que ecoam no cânone do NT, e que a interpretação exegética pode explicar a maior ou menos proximidade de uma escritura ou de um trecho da escritura em face da mensagem de Cristo nelas subjacente, mas não tem possibilidade de decidir, de alguma forma válida em sentido geral, sobre o caráter normativo deste trecho particular da escritura exclusivamente. 

A questão indispensável referente ao "cânone dentro do cânone" ou aos "limites internos do cânone" ²² leva à percepção de que uma nova determinação dos limites externos do cânone não teria sentido, mas, por outro lado, também nos liberta a fim de que possamos levantar a questão básica que volta-e-meia é proposta e à qual é preciso responder. Que é que existe no NT que de fato "pregue o Cristo e o torne real?" ²³. A delimitação factual e a abertura atual dos limites do cânone correspondem à historicidade da revelação de Deus em Jesus Cristo.

Referência Bibliográfica

Introdução ao Novo Testamento, Werner G. Kümmel, Ed. Paulus, 4ª Ed., 2009, pags. 627-673