sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Objeções à Autoria de Moisés do Pentateuco

Vários sábios julgaram que o Pentateuco não pode ter sido escrito por Moisés ¹. Dizem que pela própria Escritura se evidencia que o primeiro exemplar conhecido foi encontrado na época do rei Josias ² e que esse único exemplar foi apresentado ao rei pelo secretário Safan. Ora, entre Moisés e esse achado do secretário Safan há 867 anos pelos cálculos hebraicos. De fato, Deus apareceu a Moisés na sarça ardente no ano do mundo de 2213 e o secretário Safan publicou o livro da Lei no ano do mundo de 3380. Esse livro encontrado no reinado de Josias ficou desconhecido até o retorno do cativeiro de Babilônia; e dizem que foi Esdras, inspirado por Deus, que trouxe a público todas as Sagradas Escrituras.

Ora, que Esdras ou outro que tenha escrito esse livro, isso é absolutamente indiferente se o livro é inspirado. No Pentateuco não se diz que Moisés tenha sido seu autor; seria, portanto, permitido atribuí-lo a outro homem qualquer, a quem o espírito divino o teria ditado, se a Igreja, por outra, não tivesse decidido que o livro é de Moisés.

Alguns contraditores acrescentam que nenhum profeta citou os livros do Pentateuco, que não há referências dele nem nos Salmos nem nos livros atribuídos a Salomão nem em Jeremias nem em Isaías nem, enfim, em nenhum livro canônico. Os termos que respondem àqueles de Genesis, Êxodo, Números, Levítico, Deuteronômio, não são encontrados em nenhum outro escrito, seja do Antigo como do Novo Testamento.

Outros mais ousados propuseram as seguintes questões:

1ª. - Em que língua Moisés teria escrito num deserto selvagem? Só poderia ter sido egípcio, pois, pelo próprio livro se constata que Moisés e todo o seu povo tinham nascido no Egito. É provável que não falassem outra língua. Os egípcios não se serviam ainda de papiro; gravavam hieróglifos em mármore ou em madeira. Está claramente dito que as tábuas dos mandamentos foram gravadas em pedra. Teria sido necessário, portanto, gravar cinco volumes em pedras polidas, o que requereria esforços e um tempo prodigiosos.

2ª. - É possível que num deserto, onde o povo judeu não tinha nem sapateiros e nem alfaiates e onde o Deus dos universos era obrigado a realizar um milagre contínuo para conservar as velhas roupas e os velhos calçados dos judeus, tenham sido encontrados homens bastante hábeis para gravar os cinco livros do Pentateuco em mármore ou em madeira? Pode-se responder que foram encontrados operários capazes de fundir um bezerro de ouro e que em seguida reduziram o ouro em pó; que construíram um tabernáculo, que o ornaram com 34 colunas de bronze com capitéis de prata; que urdiram e bordaram véus de linho, de jacinto, de púrpura e de escarlate; mas isso não fortalece a opinião dos contraditores. Respondem que não é possível que num deserto, onde faltava de tudo, tivessem feito obras tão requintadas; que teria sido necessário começar por fazer calçados e túnicas; que aqueles que carecem do necessário não podem se entregar ao luxo; e que é uma contradição evidente dizer que tivesse havido fundidores, gravadores, escultores, tintureiros, bordadores, quando não tinham nem roupas, nem sandálias e nem pão.

3ª. - Se Moisés tivesse escrito o primeiro capítulo do Gênesis, teria sido proibido a todos os jovens a leitura desse primeiro capítulo? Teria sido prestado tão pouco respeito ao legislador? Se fosse Moisés que tivesse dito que Deus pune a iniquidade dos pais até a quarta geração, Ezequiel teria ousado dizer o contrário?

4ª. - Se Moisés tivesse escrito o Levítico, poderia ter-se contradito no Deuteronômio? O Levítico proíbe casar com a mulher do próprio irmão, o Deuteronômio o ordena.

5ª. - Moisés teria falado em seu livro de cidades que não existiam na época dele? Teria dito que cidades que para ele estavam a oriente do Jordão, ficava a ocidente?

6ª. - Teria destinado 48 cidades aos levitas num país onde nunca houve dez cidades e num deserto por onde sempre vagou sem ter uma casa?

7ª. - Teria prescrito regras para os reis judeus, quando não só não havia reis nesse povo como a idéia de ter reis era totalmente reprimida, sendo até provável que nunca os tivesse tido nesses tempos? Como! Moisés teria decretado preceitos para a conduta dos reis que só vieram cerca de oitocentos anos depois dele e não teria dito nada a respeito dos juízes e dos pontífices que o sucederam? Esta reflexão não leva a crer que o Pentateuco foi composto nos tempos dos reis e que as cerimônias instituídas por Moisés não tivessem passado de simples tradição?

8ª. - Como seria possível que tivesse dito aos judeus: "Eu os fiz sair em número de 600 mil combatente da terra do Egito, sob a proteção de seu Deus"? Os judeus não lhe teriam respondido: "Deverias ser bem tímido para não nos conduzir contra o faraó do Egito; ele não podia nos opor um exército de 200 mil homens. Jamais o Egito teve tantos soldados de infantaria; nos o teríamos vencido facilmente, seríamos os donos de seu país. O quê! O Deus que te fala assassinou para nos agradar todos os primogênitos do Egito e, se houvesse nesse país 300 mil famílias, isso daria 300 mil homens mortos numa noite para nos vingar; e tu não fizeste como teu Deus! E tu não nos deste esse país fértil que ninguém poderia defender! Tu não nos fizeste sair do Egito como ladrões e covardes, para nos fazer morrer nos desertos, entre os precipícios e as montanhas! Poderias pelo menos conduzir-nos diretamente a essa terra de Canaã, sobre a qual não temos nenhum direito, mas que nos prometeste e na qual ainda não pudemos entrar."

"Era natural que da terra de Gessém marchássemos para Tiro e Sidon, ao longo do Mediterrâneo; mas tu nos fizeste atravessar quase to o istmo de Suez; tu nos fizeste entrar novamente no Egito, remontar até além de Mênfis e nos encontramos em Beel-Sephon, nas margens do Mar Vermelho, voltando as costas para a terra de Canaã, tendo caminhado 80 léguas nesse Egito que desejávamos evitar e, finalmente, prestes a morrer entre o mar e o exército do faraó!"

"Se tivesses desejado livrar-nos de nossos inimigos, não teria tomado outra rota e outra medidas? Deus nos salvou com um milagre, dizer; o mar se abriu para nos deixar passar; mas, depois de semelhante favor, era necessário deixar-nos morrer de fome e de fadiga nos horríveis desertos de Etam, de Cades Barne, de Mara, de Elim, de Horeb e do Sinai? Todos os nossos pais pereceram nessas solidões atrozes, e tu nos vens dizer, depois de quarenta anos, que Deus teve um cuidado particular com nossos pais!"

Ai está o que esses judeus murmuradores, esses filhos injustos dos judeus vagabundos, mortos nos desertos, poderiam ter dito a Moisés, se ele lhes tivesse lido o Êxodo e o Gênesis. E o que poderiam ter dito e feito a respeito do bezerro de ouro? "O quê! Ousas nos contar que teu irmão fez um bezerro de ouro para nossos pais, quando tu estavas com Deus na montanha, tu que ora nos dizer ter falado com Deus face a face, ora que só pudeste vê-lo pelas costas! Mas, enfim, tu estava com esse Deus e teu irmão funde num só dia um bezerro de ouro e o apresenta a nós para adorá-lo; e, em lugar de punir teu indigno irmão, fazes dele nosso pontífice e ordenas a teus levitas degolar 20 mil homens de teu povo! Nossos pais teriam suportado isso? Teriam se deixado subjugar como vítimas por sacerdotes sanguinários? Tu nos dizes que, não contente com essa carnificina incrível, mandaste ainda massacrar 24 mil de teus pobres seguidores, porque um deles havia dormido com uma midianita, quando tu mesmo te casaste com uma midianita; e acrescentas que és o mais doce de todos os homens! Com mais algumas ações dessa doçura e não restaria ninguém para contar a história."

"Não, se foste capaz de semelhante crueldade, se pudeste exercê-la, seria o mais bárbaro de todos os homens e todos os suplícios não bastariam para expiar um crime tão estranho."

São essas, aproximadamente, as objeções feitas pelos sábios àqueles que pensam que foi Moisés o autor do Pentateuco. Mas pode-se responder a eles que os caminhos de Deus não são os dos homens; que Deus experimentou, conduziu e abandonou seu povo por uma sabedoria que nos é desconhecida; que os próprios judeus durante mais de dois mil anos acreditaram que foi Moisés o autor desses livros; que a Igreja, que sucedeu à sinagoga, e que é infalível como ela, decidiu esse ponto de controvérsia, e que os sábios devem calar-se quando a Igreja fala.

Notas:

1. Será realmente verdade que existiu um Moisés? Se um homem que comandava a natureza inteira tivesse existido entre os egípcios, tão prodigiosos acontecimentos não teriam constituído a parte principal da história do Egito? Sanchoniathon, Maneton, Megastenes, Heródoto não teriam falado a respeito? O historiador Flavio Josefo recolheu todos os testemunhos possíveis em favor dos judeus; não ousa afirmar que algum dos autores que cita tenha dito uma única palavra sobre os milagres de Moisés. O quê? O Nilo teria sido transformado em sangue, um anjo teria degolado todos os primogênitos do Egito, o mar se teria aberto, suas águas teriam sido suspensas à direita e à esquerda e nenhum autor teria falado disso? E as nações teriam esquecido desses prodígios? E só haveria um pequeno povo de escravos bárbaros que nos teria contado esas histórias, milhares de anos após o ocorrido.

Quem é, portanto, esse Moisés desconhecido de toda a terra até a época em que um Ptolomeu teve a curiosidade de mandar traduzir em grego os escritos dos judeus? Havia muitos séculos que as fábulas orientais atribuíam a Baco tudo o que os judeus disseram de Moisés. Baco tinha atravessado o mar Vermelho a pé enxuto. Baco tinha transformado as águas em sangue, Baco tinha diretamente operado milagres com seu bastão: todos esses fatos eram cantados nas orgias de Baco antes que se tivesse o menor relacionamento com os judeus, antes que se soubesse até se esse pobre povo tinha livros. Não é extremamente provável que esse povo tão novo, por tanto tempo errante, tão tardiamente conhecido, estabelecido tão tarde na Palestina, tivesse tomado com a língua fenícia as fábulas fenícias, enfeitando-as mais ainda, como fazem todos os imitadores grosseiros? Um povo tão pobre, tão ignorante, tão alheio a todas as artes, poderia fazer outra coisa senão copiar seus vizinhos? Não se sabe que até o nome Adonai, de Ihaho, de Eloí ou de Eloá, que significou Deus na nação judaica, tudo era fenício? (Nota de Voltaire, acrescentada na edição de 1765)

2. Ver 2°. Livro dos Reis, cap. XXII e 2°. Livro das Crônicas, cap XXXIV (NT)

Extraído de Dicionário Filosófico, Voltaire, Ed. Escala, pág. 399-402

2 comentários:

  1. Nao entendi vc dizer que nao tinham papiros sendo que encontraram um de 4500 anos. Poderia explicar? http://www.ctvnews.ca/world/egypt-displays-oldest-papyrus-4-500-years-old-1.2986553

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    1. Quem escreveu o texto acima foi Voltaire, e na época dele os estudos arqueológicos não estava tão desenvolvidos. Mas, mesmo assim, a maioria dos estudiosos argumenta que os livros escritos do Pentateuco são um produto da época do cativeiro babilônico (cerca de 600 a.C.), e estes escritos foram baseados em tradições orais e escritas antigas, que surgiram em comunidades antigas separadas dentro do antigo Israel. Segundo os mesmos estudiosos, essa compilação acabou por volta de 400 a.C. Em 1979 surgiu a descoberta de fragmentos da biblia hebraica (a parte da benção sacerdotal do livro de Números) em Ketef Hinnom, datando do século 7 a.C., e portanto antes do cativeiro babilônico, e está é a única evidencia de elementos do Pentateuco que estão foram do contexto do exílio babilônico. Mas é lógico que esse fragmento só nãó prova a existência do Pentateuco já nesta época.

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