sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

A diversidade do Cristianismo Primitivo


O Cristianismo Moderno é amplamente diverso, em termo de suas estruturas sociais, crenças e práticas. Mas esta diversidade é leve em comparação com o Cristianismo durante os três primeiros séculos.

Quando falamos do Cristianismo no mundo moderno nós naturalmente pensamos de uma coisa. Mas ao mesmo tempo, nós sabemos que o Cristianismo é, em fato, uma ampla variedade de coisas. Isto pode ser visto no domínio de crenças de diferentes cristãos, incluindo tanto as crenças majoritárias como aquelas referentes a Deus, a natureza de Jesus e a ressurreição de Jesus. Muitos cristãos pensam de Deus como um ser pessoal, uma espécie de “superhumano” no céu. Outros acham isso blasfemoso ao fazer Deus em nossa própria imagem. Ainda outros vêem Deus como uma força impessoal que está atrás de tudo o que vive no universo. Muitos cristãos colocam grande importância na crença de que Jesus morreu na cruz pela salvação. Outros colocam mais ênfase em sua vida e ensinamentos morais. Para alguns cristãos a ressurreição é uma reanimação física e verdadeira do corpo de Jesus. Outros consideram a ressurreição de Jesus como sendo uma alegação simbólica. O inferno, para alguns cristãos, é o destino daqueles que não mantiveram as crenças corretas. Outros consideram o inferno a ser uma metáfora para a vida separada de Deus.

O mesmo pode ser dito das práticas cristãs, tais como batismo e Eucaristia (comunhão), para não mencionar as práticas incomuns de algumas comunidades cristãs (manejo de serpentes, batismo pelos mortos). O Batismo pode significar, por exemplo, um rito que remove o pecado original, o substituto cristão para circuncisão, um sinal exterior de limpeza espiritual ou um caminho para a salvação. Alguns cristãos acreditam que tomando parte na comunhão, eles estão literalmente comendo o corpo e o sangue de Cristo, enquanto que, para outros cristãos, a Eucaristia é um alimento simbólico. De particular relevância para esta série de lições são as amplamente diferentes visões das Escrituras entre os diferentes grupos cristãos hoje, tanto seu conteúdo (quais livros realmente pertencem?) e seu caráter (em qual maneira, ao todos, foram eles inspirados?). Como foram as decisões sobre quais livros deveria ser incluídos? Quem fez estas escolhas e em quais fundamentos? São todas as Escrituras Cristãs a literal e precisa palavra de Deus?

Assim, a despeito daquilo que podemos imaginar, a Cristandade não é monolítica, e nunca foi. Nesta lição, consideraremos as variedades de Cristianismo no mundo antigo, variedade que fazem as modernas diferenças entre os cristãos parecerem inofensivas por comparação. Em particular, olharemos as primitivas formas de Cristianismo que não sobreviveram, que se extinguiram, que perderam a luta para converter adeptos e estabelecer domínio, formas de Cristianismo que então se tornaram perdidas. E nós estaremos especialmente interessados em explorar as Escrituras destes Cristianismos perdidos, para ver o que eles alegados seguidores de Jesus acreditam e como esperavam agir.

É importante considera o escopo da nossa investigação. Nosso tempo de referência cobrirá o período imediatamente posterior ao Novo Testamento até o famoso Concílio de Nicéia no início do século quatro: rudemente os vários cristianismos do secundo e terceiro séculos da nossa era. Uma ampla variedade de crenças é encontrada no Novo Testamento, mas este assunto é abrangido já em outro curso de lições. Para esta lição, é importante apontar que existiam muitas diferentes espécies de livros no Novo Testamento e que eles eram escritos por diferentes autores, em diferentes tempos, para diferentes públicos e com diferentes mensagens. Em muitas instâncias, estas mensagens não são apenas levemente diferentes, mas elas parecem representar diferentes interpretações do significado de Jesus, o caminho da salvação e a relação da fé em Jesus com a religião dos judeus.

Estas dificuldades continuaram no segundo e terceiro séculos. Nós terminaremos nossa investigação no começo do quarto século, a cerca da época do Concílio de Nicéia, por que é onde nós encontramos a primeira publicação oficia de uma crença cristã “ortodoxa”, que por uma vez e por todas eliminou, para a maioria dos cristãos, muitas das opções primitivas. Nosso assunto não é o amplo domínio de antigas religiões neste período, mas apenas os grupos religiosos que alegavam ser cristãos, ou seja, que alegavam aderir a religião ensinada por Jesus e seus seguidores. A extensão de crenças entre estes grupos religiosos é notável, seja com respeito a Deus (Havia apenas um?), seja com relação ao mundo (Foi ele criado por um Deus verdadeiro?), Seja com relação a Cristo (Era ele humano? Divino? Ambos?), com relação à sua morte (Havia ele morrido pelos pecados? Havia ele mesmo morrido?), e uma variedade de outras doutrinas críticas.

Esta variedade de crenças cristãs primitivas levanta uma importante questão: Por que os vários cristãos primitivos que mantinham tais crenças bizarras simplesmente não liam o Novo Testamento para ver se eles estavam errados? A resposta por ser óbvia para alguns, mas surpreendente para outros. Estes cristãos do segundo e do terceiro séculos não liam o Novo Testamento porque o Novo Testamento simplesmente ainda não existia.

Os livros em si, naturalmente, já haviam sido escritos, mas eles não tinham sido coletados em um sagrado e autorizado canon de Escritura. O termo canon se refere a uma coleção de livros autorizados. Um dos pontos que nós aprenderemos é que o nosso canon não existia como uma coleção oficialmente reconhecida durante os segundo e terceiro séculos. Os vinte e sete livros que inicialmente fizeram parte do canon do Novo Testamento representam os vinte e sete livros escritos pelos seguidores de Jesus na segunda metade do primeiro século. O canon consiste de quatro tipos de livros: Evangelhos (histórias da vida de Jesus); o Livro de Atos (uma narrativa da vida e ministério dos apóstolos após a morte de Jesus); Epístolas (cartas escritas por cristãos individuais ou grupos); e o Apocalipse (uma narrativa do que se tornará conhecido no final do tempo). Outros livros foram escritos no mesmo tempo, contudo, também alegando serem escritos por seguidores de Jesus. Cada um dos primitivos grupos cristãos que mantinham suas crenças e práticas distintas tinha livros que eram creditados a terem sido escritos pelos próprios apóstolos de Jesus: Evangelhos, por exemplo, alegadamente escritos por seus discípulos Tomé, Filipe e Maria Madalena.

Para colocar contexto para estas questões, é importante compreender alguns traços básicos da expansão do Cristianismo do tempo de Jesus até o início do quarto século se espalhando em diferentes partes do mundo romano com o tempo, com compreensões distintas do que significava ser um seguidor de Jesus e escritos autorizados distintos para seus pontos de vista. A existência destas “outras” Escrituras conduz a outras questões. Se, no secundo e terceiro séculos, haviam muitos livros apostólicos lidos pelos muitos grupos de cristãos, quais deles eram certos? Quais errados? Quais eram de fato escritos por apóstolos? Como saberíamos? Melhor ainda, como os padres da Igreja que finalizaram o nosso canon de vinte e sete livros sabiam? E o que aconteceu então a todos os outros livros que não fizeram parte, uma vez que estes debates cristãos particulares foram encerrados?

Estas serão as controvérsias que nós dirigiremos neste curso, assim como olharemos outras formas de Cristianismo que não “venceram” e as Escrituras que estas formas de cristianismo recorreriam, algumas das quais nós conhecemos há um bom tempo, outras que foram descobertas em tempos modernos por arqueologistas e minuciosos beduínos. A seguir estão algumas das questões que iremos indagar: O que nós sabemos destes vários grupos? Que espécie de escritos autorizados ele tinham para seus pontos de vista? Nós temos o remanescente de qualquer um destes livros? O que eles dizem? Como um grupo terminou vencendo a disputa? E como nosso atual canon do Novo Testamente emergiu disso? ∎

Leitura Essencial

After the New Testament, Barth Ehrman, capítulos 1, 6-9
The New Testament Canon: Its Making and Meaning, Harry Gamble

Apresentação ‒ Cristianismos Perdidos: As Escrituras cristãs e as Batalhas sobre autenticação

Escopo

Os cristãos do segundo e terceiro séculos mantiveram uma considerável extensão ampla de crenças.  Embora algumas destas crenças possam soar ridículas hoje, naquele tempo elas pareciam não apenas sensíveis mas corretas.  Alguns cristãos sustentavam que haviam dois deuses, ou doze, ou trinta ou mais. Alguns cristãos alegavam que Jesus não era realmente um ser humano, ou que ele não era realmente divino, ou que ele era dois diferentes seres: um humano e um divino. Alguns cristãos acreditavam que este mundo não era criado por um Deus Verdadeiro, mas por uma deidade maligna para punição para as almas humanas, que tinham se tornado aprisionadas aqui em corpos humanos. Alguns cristãos acreditavam que a morte de Jesus e sua ressurreição não tinham nenhuma relação com a salvação, e alguns cristãos acreditam que Jesus não tinha de fato morrido.
Cristianismos Perdidos é um curso que considera as variedades de crenças e práticas nos primitivos dias do Cristianismo, antes que a igreja decidisse o que era teologicamente aceitável e determinasse quais livros seriam incluídos em seu canon da Escritura. Parte da disputa sobre crença e prática na igreja primitiva era sobre o que deveria ser aceito legitimamente como “cristão” e o que deveria ser condenado como “heresia”. Este curso considera o debate para ortodoxia (i.e., crença correta) e a tentativa de classificar, repelir e derrotar a heresia (i.e., falsa crença). Em particular, o curso tenta compreender os cristãos que foram mais tarde considerados heréticos em seus próprios termos e explorar os escritos que estavam disponíveis e poderiam ser apelados para apoio de seus pontos de vista.
Os cristãos hoje, naturalmente, pensam tipicamente sobre o Novo Testamento como a base para uma correta compreensão da fé. Mas o que era o Cristianismo antes que existisse o Novo Testamento? É impressionante como todos os grupos cristãos antigos, com suas diferentes visões sobre Deus, Cristo, salvação e o mundo, tivessem livros que – como aqueles que eventualmente entraram no Novo Testamento – alegavam serem escritos pelos próprios apóstolos de Jesus. Alguns destes pseudopigráficos (i.e., falsamente atribuídos) livros foram descobertos por arqueologistas e beduínos no Egito e no Oriente Médio em tempos modernos, evangelhos, por exemplo, que alegam a serem escritos pelos discípulos de Jesus Pedro, Tomé e Filipe. Estes pseudepigráficos retratam uma diferente compreensão do cristianismo de um que se tornou dominante na história da religião e é familiar a maioria das pessoas hoje. Neste curso, nós estudaremos estes livros não-canônicos e as formas de crença cristã que eles representavam, do segundo e terceiro séculos, i.e., do tempo imediatamente posterior à morte dos apóstolos de Jesus até o tempo quando muitos destas primitivas compreensões do Cristianismo tinham sido eliminadas da igreja, deixando a única forma de “ortodoxia” que se tornou triunfante no início do século quarto com a conversão do Imperador romano Constantino.
O curso é dividido em muitos componentes. Depois de uma lição introdutória que lida com a diversidade ampla do Cristianismo nos mundos moderno e antigo, nós iniciaremos uma discussão de três formas de Cristianismo que foram altamente influentes durante o secundo e o terceiro séculos cristãos: os Ebionitas, um grupo de cristãos que insistia em manter sua identidade judaica enquanto acreditando em Jesus; os Marcionitas, um grupo que rejeitou tudo o que era judaico de suas compreensões de Jesus; e os Gnósticos, um grupo de vasto alcance e que compreendia que este mundo era um local maligno de prisão do qual alguém poderia escapar por aprender a verdade sobre sua identidade através dos ensinamentos secretos de Jesus.
Nós então começaremos por considerar, em lições separadas, importantes livros lidos e reverenciados por cada um destes grupos e pelo grupo que representava os antepassados do tipo de Cristianismo que eventualmente se tornaria dominante no Império, um grupo que classificaremos como “proto-ortodoxo” (porque eles mantiveram os pontos de vista que eventualmente vieram a serem declarados ortodoxos). Muitos destes livros são pseudônimos, forjados em nome de um ou outro dos apóstolos. Incluídos em nossa consideração estarão os “Evangelhos Gnósticos”, tais como o Evangelho de Tomé; os “Evangelhos da Infância”, que narram eventos fictícios da vida de Jesus como uma criança e adolescente; “Atos Apócrifos”, que narra descrevem as divertidas fugas dos muitos apóstolos de Jesus (incluindo a mulher Tecla) após sua morte; as “Epístolas Apócrifas” alegadamente escritas pelo apóstolo Paulo ou outros; e um apocalipse apócrifo, uma descrição de uma viagem guiada pelo céu e inferno dado ao apostolo Pedro pelo próprio Jesus.
Após considerar estes fascinantes documentos, muitos dos quais vieram ao nosso conhecimento apenas durante o século vinte, nós voltaremos a considerar os conflitos entre as várias formas de cristianismo nos primeiros séculos, para ver como ver como é que se compreender a fé que veio a ser dominante e esmagar toda sua oposição. Na seção final do curso, nós consideraremos como o partido proto-ortodoxo se revestiu de poder eclesiástico em seu clero (formando a estrutura e hierarquia que se tornaria o suporte da igreja durante a Idade Média); desenvolveu o seu canon da Escritura (o Novo Testamento, que não foi finalizado como canon até o fim do século quatro); e formulou credos padrões(como, por exemplo, o Credo dos Apóstolos e o Credo Niceno) como declarações de fé a serem adereçadas a todos os crentes, eliminando assim a possibilidade de compreensões alternativas do que poderia significar ser um seguidor de Jesus.