A FORMAÇÃO DO CÂNONE
Cânone
é uma palavra de origem grega que significa "medida",
"regra", "norma", e tem sido geralmente utilizada para
designar o elenco de textos reconhecidos como "inspirados por Deus"
e, portanto, dignos de fazerem parte da Bíblia.
No
tempo de Jesus, o próprio "Velho Testamento" não tinha sido fixado em
sua composição atual. Foi somente o sínodo judaico realizado em Jânmia, pelo
ano de 90 d.C., que se estabeleceu o cânone veterotestamentário. Trata-se dos
39 livros do "Velho Testamento" que encontramos nas bíblias
protestantes; as bíblias católicas tem
outros livros a mais. Veremos, daqui a pouco, quais são. É o chamado cânone
judaico-palestinense e os escritos que o compõem foram escolhidos segundo três
critérios.
1
- Possuir grande antiguidade
2
- Ter sido composto na Palestina.
3
- Haver sido redigido em Hebraico. (1)
Por
causa desses critérios, ficaram de fora alguns livros que figuravam na versão
Septuaginta, em grego: "Baruc", "Tobias",
"Judite", "Sabedoria", "Eclesiástico" (também
chamado de Sirac, e que não deve ser confundido com Eclesiastes, chamado
Coélet), "Carta de Jeremias aos Cativos", "I Macabeus",
"II Macabeus", e, ainda, os capítulos XI e XVI de "Ester",
e os capítulos XIII e XIV de "Daniel". Esses livros compõe o chamado
cânone judaico-helenístico, e foram também denominados
"deuterocanônicos" pelos judeus emigrados e pelos primeiros cristãos.
Os protestantes rejeitam-nos por considerá-los "apócrifos", no
sentido de não autênticos, "escondidos sob um falso nome". As
Sociedades Bíblicas britânicas, de sua parte, resolveram retirar da Bíblia
esses livros somente a partir de 1820, passaram a não mais fazer parte das
edições da Bíblia publicadas pelas Igrejas Evangélicas. (2) Apesar disso,
alguns pastores e teólogos protestantes aconselham a sua leitura por
considerá-la instrutiva, mas raramente suas "ovelhas" obedecem a este
conselho. Os católicos, por sua vez, aceitaram-nos em seu cânone.
Não
podemos nos esquecer dos textos judaicos considerados apócrifos, mesmo pela
Igreja Católica Romana: os "Salmos de Salomão", o "Livro de
Enoc", o "Livro dos Jubileus", os "Testamentos dos Doze
Patriarcas", o "Livro IV de Esdras", a "Assunção de
Moisés", e os diversos apocalipses atribuídos à Baruc, a Esdras, e a
outras personagens bíblicas. Mas, se esses escritos não foram
"inspirados", então por que Judas Tadeu teria feito citações deles em
sua epístola? Em Jd
I, 9 temos uma provável alusão à "Assunção de Moisés", e, Jd I, 14 s
temos um trecho do "Livro de Enoc". Santo Agostinho, bispo de Hipona
(354-430) disse que a Igreja recusou o "Livro de Enoc" dentre os
canônicos por ser muito antigo (3) o que bem dá uma idéia dos estranhos métodos
utilizados, por vezes, na seleção dos documentos.
O
espanhol Mario Roso de Luna (1872-1931), estudioso do simbolismo das religiões,
emitiu a opinião de que "nem sempre a Igreja Romana é lógica ou
prudente". De fato, ao declarar apócrifo o "Livro de Enoc", foi
tão longe que, pelas mãos do cardeal Cayetano e de outros luminares
eclesiásticos, rechaça até o cânone do próprio "Livro de Judas" que,
como apóstolo inspirado, faz citações do "Livro de Enoc", com isso
santificando-o inevitavelmente. (4)
O
"Livro de Enoc" acabou sendo aceito apenas pela Igreja Etíope, que
conservou o seu texto original em gueês, a língua literária e litúrgica da
Abissínia. Só recentemente encontrou-se, no deserto da Judéia, um exemplar,
incompleto, do "Livro de Enoc, em aramaico. (5)
A
formação do cânone cristão neotestamentário foi mais atribulada. A primeira
tentativa de estabelecer uma listagem dos livros que deveria compor o
"Novo Testamento" foi a de Márcion, um rico cristão originário de
Sinope, na Ásia Menor e transferido para Roma por volta do ano 140. Márcion
acreditava que a tradição hebraica havia sido completamente suplantada pelo
Cristianismo e, por isso, todos os textos cristãos que denunciassem a menor
influência judaica deveriam ser postos à parte. Assim, ele rejeitou três dos
quatro evangelhos hoje considerados canônicos, aceitando apenas o de Lucas,
depurado de deformações e adendos que ele julgava terem sido introduzidos por
elementos "judaizantes". Das epístolas de Paulo, ele só aceitou como
legítima dez delas, rejeitando as três epístolas pastorais e a epístola aos
hebreus.
Márcion
foi "excomungado" em 144, mas sua iniciativa chamou a atenção para a
necessidade de se estabelecer um cânone oficial. Desenvolveu-se na Igreja o
critério da primazia da autoria e dos ensinamentos dos apóstolos. Porém, a
atribuição da autoria de determinados textos a esse ou àquele apóstolo foram, e
ainda são, motivo de muitas controvérsias.
Comecemos
pelas epístolas paulinas. Já vimos que Márcion rejeitou a primeira e a segunda
epístolas a Timóteo, bem como as epístolas a Tito e aos hebreus por não
reconhecê-las como sendo de autoria de Paulo. A Igreja Católica, no entanto,
incluiu-as em seu cânone. Hoje em dia, estudiosos parecem reconhecer que
Márcion estava certo. Assim, o alemão Alfred Läpple afirma que a epístola aos
hebreus foi escrita cerca do ano 80, e as epístolas a Timóteo e a Tito foram
redigidas pelo ano 100, décadas após a morte de Paulo, ocorrida em 64 ou 67.
Elaine
Pagels vai mais longe: junto a I Timóteo, II Timóteo e Tito, ela também
classifica as cartas aos Efésios, aos Colossenses e a segunda carta aos
Tessalonicenses como pseudopaulinas. Um dos motivos de Pagels para a rejeição
desas cartas é que elas enfatizam a exageram as opiniões
"antifemininas" de Paulo: nelas, o apóstolo restringira a
participação das mulheres na vida da Igreja (como, por exemplo, em I Tm II,
12), o que é totalmente contrário a doutrina cristã. De fato, elas estão em
contradição com outras cartas em que Paulo prestigia, não só os homens, mas
também as mulheres que trabalhavam ativamente pela causa do cristianismo - por
exemplo, no capítulo XVI da "Carta aos Romanos", onde Paulo chega a
fazer referência a uma apóstola chamada Júnia. (6) A aceitação dessas epístolas
no cânone teria ocorrido pelo ano 200. (7) Realmente, a mais antiga coletânea
das cartas de Paulo data de 200/220
(papiros P ⁴⁶ ,
encontrados cerca de 100 km ao sul de Cairo, em 1930) e contêm as mesmas que se acham em nossas bíblias.
O
mais antigo cânone elaborado pela Igreja Romana, de que se tem notícia, é
aquele registrado no manuscrito denominado "Cânone Muratoriano", por
ter sido descoberto em 1740 por Ludovico Muratori, na Biblioteca Ambrosiana de
Milão. Data de 180, aproximadamente (8) e nele encontramos informações
interessantes. Por exemplo: esse cânone rejeita as duas epístolas que
supostamente teriam sido escritas por Paulo às igrejas de Laodicéia e
Alexandria (trata-se das epístolas perdidas), por considerá-las como tendo sido
forjadas por seguidores de Márcion. Informa que a Igreja, naquela época,
aceitava o livro deuterocanônico "Sabedoria", escrito segundo o
cânone, por amigos do rei Salomão, em sua honra; hoje, esse livro ainda é
considerado canônico pela Igreja Católica Apostólica Romana, mas os
protestantes o rejeitam, como já vimos.
Das
epístolas católicas, parece que só aceitava três: a de Judas e duas das de João.
É bom explicar que não sabemos qual foi a epístola de João, das três hoje
existente em nossas bíblias, que não foi aceita pelo Cânone Muratoriano.
Nós
nos surpreendemos, ainda, ao saber que, naquela época, a Igreja aceitava dois
Apocalipses: o de João, que temos em nossas bíblias, e outro, atribuído a
Pedro; porém, o Cânone Muratoriano acrescenta que "alguns dos nossos não
querem que sejam lidos na Igreja". (9)
Sobre
o livro intitulado "Pastor", escrito por um certo Hermas, enquanto
seu irmão Pio era bispo de Roma (140-155), o Cânone Muratoriano informa que
"é necessário que seja lido, mas não pode ser apresentado na igreja, ao
povo, nem como profeta, porque seu trabalho já se encontrava completo; nem como
apóstolo, tendo vindo nos fins dos tempos". (10) Temos aqui mais uma
amostra de como eram obscuros os critérios utilizados naquela época para
definir se um livro deveria ou não ser considerado canônico.
O
Cânone Muratoriano parece, também, inaugurar o primeiro "Índex" dos
livros proibidos, quando rejeita, taxativamente, qualquer obra escrita por
autores como o gnóstico Valentino (que residiu em Roma por volta de 140-160
d.C., tendo antes morado em Alexandria, no Egito, onde a seita gnóstica tinha
numerosos adeptos), ou o fundador da Igreja Catafrígia, Basílides.
Pela
mesma época (isto é, por volta de 180 d.C.), o bispo de Lyon, Irineu (c. 130-c.
202), escreveu um livro intitulado "Contra as Heresias" onde se
queixava de que os "hereges" estavam espalhando a idéia de que
existiam outros evangelhos além dos quatro conhecidos. Irineu afirmava que os
quatro evangelhos do "Novo Testamento" eram legítimos, simplesmente
porque foram escritos pelos próprios discípulos de Jesus e seus seguidores -
que teriam testemunhado, em pessoa, os acontecimentos que relataram.
Por
outro lado, é bom lembrar que os "hereges" também afirmavam que
muitos dos seus escritos tinham origem apostólica (como seria o caso do
"Evangelho de Tomé"). Irineu refutava essas afirmações dos
"hereges", argumentando que seus escritos eram falsamente
apostólicos. Porém, devemos raciocinar que, se por um lado, os hereges não
poderiam provar a origem apostólica de seus escritos, do outro, também, o bispo
Irineu e os cristãos ortodoxos em geral não podiam (e não podem, até hoje)
provar a origem apostólica dos documentos considerados canônicos.
A
historiadora e teóloga americana Elaine Pagels, no que se refere à autoria dos
evangelhos, conclui pelo seguintes: "Mas alguns estudiosos modernos da
Bíblia refutam essa noção: hoje poucos acreditam que foram contemporâneos de
Jesus que realmente redigiram os evangelhos do "Novo Testamento".
Embora Irineu, argumentando serem os únicos realmente legítimos, insista que
eles foram escritos pelos próprios seguidores de Jesus, não sabemos
virtualmente nada sobre as pessoas que escreveram os evangelhos que chamamos de
Mateus, Marcos, Lucas e João. Sabemos, apenas, que esses escritos são
atribuídos a apóstolos (Mateus e João) ou a seguidores dos apóstolos (Marcos e
Lucas)". (11)
Não
contente em ter atribuído origem apostólica aos evangelhos canônicos, Irineu
ainda quis demonstrar porque eles tinham de ser em número de quatro: era porque
o mundo tem apenas quatro partes, quatro são os ventos cardeais e ainda porque
o profeta Ezequiel tivera uma visão em que lhe apareceram quatro seres.
"Chama ele, a isso, demonstração", comentaria sarcástico, séculos
depois, o filósofo Voltaire. (12) Não obstante, a Igreja Católica acreditou na
associação feita por Irineu, entre os evangelhos e os seres vistos por
Ezequiel. Assim, desde o Século IV, a iconografia católica faz representar
Mateus por um anjo ou por um menino, Marcos por um leão, Lucas por um boi e
João por uma águia.
Ainda
durante algum tempo, teólogos e eruditos cristãos continuaram a discutir a
aceitação deste ou daquele escrito. Assim, o mais antigo historiador do
Cristianismo, Eusébio de Cesaréia (c. 260 - c. 339), ainda não aceitava como
canônicos a segunda epístola de Pedro, as epístolas de Tiago e Judas e as duas
últimas de João. (13)
Na
verdade, o cânone cristão variou até mesmo segundo a área geográfica do Império
Romano. Assim, enquanto as igrejas da parte oriental do Império Romano
acolheram desde cedo as epístolas de Tiago, a segunda de Pedro e a Carta aos
Hebreus, as da parte Ocidental só as aceitaram no final do século IV. (14) Por
sua vez, as igrejas do Oriente tiveram dificuldades em aceitar o Apocalipse de
João: um concílio local, reunido em Laodicéia, no ano 360, rejeitou-o.
No
Ocidente, as discussões terminaram em 397, com o Concílio de Cartago, que
definiu o cânone tal como se apresenta hoje em nossas bíblias. Ainda assim, o
Papa Gelásio (pontífice entre 492 e 496) achou por bem promulgar um catálogo
dos livros que deveriam ser considerados canônicos. As Igrejas do Oriente, no
entanto, não acataram essas decisões. O Apocalipse de João, por exemplo, só foi
finalmente aceito pela Igreja Oriental durante o reinado de Justiniano
(527-565), enquanto escritos rejeitados pela Igreja Ocidental continuaram a ser
lidos no Oriente e até mesmo incluídos nas bíblias.
Duas
das mais antigas bíblias hoje existentes incluem escritos considerados não
canônicos. Uma é aquela conhecida como Códice Sinaítico, assim chamada por te
sido encontrada no Mosteiro Ortodoxo de Santa Catarina, no Monte Sinai, e
remonta à segunda metade do Século IV da era cristã (350-400 d.C.)
Além
dos escritos do Novo Testamento que hoje conhecemos, o Códice Sinaítico inclui
também a "Epístola de Barnabé" e o "Livro do Pastor", de
Hermas. Outra, redigida no Egito em meados do Século V ou talvez no fim daquele
século (450-500 d.C.) e denominada Códice Alexandrino, traz, junto aos livros
canônicos, a "Epístola de Clemente Romano". (15) É significativo que
estas bíblias sejam provenientes da antiga parte oriental do Império Romano.
Foi provavelmente a resistência de várias igrejas e grupos heréticos que levou
o Papa Gelásio a publicar um cânone dos livros que deveriam ser considerados
sagrados, mesmo após o Concílio de Cartago já tê-lo definido, em 397 - não
obstante, deve-se considerar que esse não foi um concílio ecumênico. (16)
Em
692, um concílio reunido em Constantinopla, e não reconhecido por Roma,
procurou estabelecer o cânone bíblico da Igreja Oriental, que hoje é
praticamente o mesmo da Católica Romana.
A
Igreja da Etiópia, por sua vez, estabeleceu um cânone próprio, que inclui
livros deuterocanônicos (como "Tobias" e "Judite") ou
considerados, por outras igrejas, como "não inspirados" (como o
"Pastor" de Hermas e o "Livro de Enoc"). (17)
Notas
01. Schiavo, José - Obra citada,
p. 10 (Introdução)
02. Idem, Ibidem, p. 11
(Introdução)
03. Agostinho, Santo - "A
Cidade de Deus", XV e XXIII, apud Roso de Luna, Mário - Obra citada, pp.
166 e 167.
04. Roso de Luna, Mário - Obra
citada, p. 171.
05. Annequin, Guy - "As
Civilizações do Mar Vermelho". Rio de Janeiro, Otto Pierre Editores, 1978,
pp. 132 e 279.
06. Pagels, Elaine - "Os
Evangelhos Gnósticos". pp. 90 e 92. Sobre a participação das Mulheres na
vida da Igreja, nos primórdios, veja Antoniazzi, Alberto e Cristiano, Henrique
- Obra citada, p. 16, onde os autores enfocam, inclusive, o caso de Júnia.
07. Pagels, Elaine - "Os
Evangelhos Gnósticos". p. 48.
08. Läpple, Alfred - Obra citada,
pp. 123 e 124
09. Apud Donini, Ambrósio - Obra
citada, pp. 144.
10. Idem, Ibidem.
11. Pagels, Elaine - "Os Evangelhos
Gnósticos". p. 48.
12. Voltaire - "Dicionário Filosófico". Rio de
Janeiro, Tecnoprint, s/d,
p. 32 (verbete "Apocalipse").
13. Donini, Ambrógio - Obra citada, p. 62
14. Hurbult, Jesse Lyman - Obra citada, p. 55, onde o autor
fala das diferenças inicialmente existentes entre os cânones das Igrejas do
Ocidente e do Oriente.
15. Läpple, Alfred - Obra citada, pp. 28 e 30.
16. Hermínio C. Miranda deixa entender, realmente, que o
cânone teria sido definido - pelo menos no que concerne ao Novo Testamento -
pelo Concílio de Cartago: "Quando hoje pensamos nos Evangelhos, temos em
mente os documentos canônicos tradicionais, considerados de boa linhagem
doutrinária pela Igreja, no Concílio de Cartago, em 397: os três sinóticos, o
Evangelho de João, os Atos dos Apóstolos, as diversas epístolas e o Apocalipse
de João" (Miranda, Hermínio C. - "O Evangelho de Tomé: Texto e
Contexto", p. 20).
17 Annequin, Guy - Obra citada, p. 278.
Adendo:
Todos os créditos do texto e das notas devem ser dados à Pinheiro Martins,
"História da Formação do Novo Testamento", Edições CELD, 1993
Nenhum comentário:
Postar um comentário