quarta-feira, 26 de junho de 2013

História da Formação do Novo Testamento: A Formação do Cânone

A FORMAÇÃO DO CÂNONE

                Cânone é uma palavra de origem grega que significa "medida", "regra", "norma", e tem sido geralmente utilizada para designar o elenco de textos reconhecidos como "inspirados por Deus" e, portanto, dignos de fazerem parte da Bíblia.
                No tempo de Jesus, o próprio "Velho Testamento" não tinha sido fixado em sua composição atual. Foi somente o sínodo judaico realizado em Jânmia, pelo ano de 90 d.C., que se estabeleceu o cânone veterotestamentário. Trata-se dos 39 livros do "Velho Testamento" que encontramos nas bíblias protestantes;  as bíblias católicas tem outros livros a mais. Veremos, daqui a pouco, quais são. É o chamado cânone judaico-palestinense e os escritos que o compõem foram escolhidos segundo três critérios.
                1 - Possuir grande antiguidade
                2 - Ter sido composto na Palestina.
                3 - Haver sido redigido em Hebraico. (1)

                Por causa desses critérios, ficaram de fora alguns livros que figuravam na versão Septuaginta, em grego: "Baruc", "Tobias", "Judite", "Sabedoria", "Eclesiástico" (também chamado de Sirac, e que não deve ser confundido com Eclesiastes, chamado Coélet), "Carta de Jeremias aos Cativos", "I Macabeus", "II Macabeus", e, ainda, os capítulos XI e XVI de "Ester", e os capítulos XIII e XIV de "Daniel". Esses livros compõe o chamado cânone judaico-helenístico, e foram também denominados "deuterocanônicos" pelos judeus emigrados e pelos primeiros cristãos. Os protestantes rejeitam-nos por considerá-los "apócrifos", no sentido de não autênticos, "escondidos sob um falso nome". As Sociedades Bíblicas britânicas, de sua parte, resolveram retirar da Bíblia esses livros somente a partir de 1820, passaram a não mais fazer parte das edições da Bíblia publicadas pelas Igrejas Evangélicas. (2) Apesar disso, alguns pastores e teólogos protestantes aconselham a sua leitura por considerá-la instrutiva, mas raramente suas "ovelhas" obedecem a este conselho. Os católicos, por sua vez, aceitaram-nos em seu cânone.

                Não podemos nos esquecer dos textos judaicos considerados apócrifos, mesmo pela Igreja Católica Romana: os "Salmos de Salomão", o "Livro de Enoc", o "Livro dos Jubileus", os "Testamentos dos Doze Patriarcas", o "Livro IV de Esdras", a "Assunção de Moisés", e os diversos apocalipses atribuídos à Baruc, a Esdras, e a outras personagens bíblicas. Mas, se esses escritos não foram "inspirados", então por que Judas Tadeu teria feito citações deles em sua epístola? Em Jd I, 9 temos uma provável alusão à "Assunção de Moisés", e, Jd I, 14 s temos um trecho do "Livro de Enoc". Santo Agostinho, bispo de Hipona (354-430) disse que a Igreja recusou o "Livro de Enoc" dentre os canônicos por ser muito antigo (3) o que bem dá uma idéia dos estranhos métodos utilizados, por vezes, na seleção dos documentos.

                O espanhol Mario Roso de Luna (1872-1931), estudioso do simbolismo das religiões, emitiu a opinião de que "nem sempre a Igreja Romana é lógica ou prudente". De fato, ao declarar apócrifo o "Livro de Enoc", foi tão longe que, pelas mãos do cardeal Cayetano e de outros luminares eclesiásticos, rechaça até o cânone do próprio "Livro de Judas" que, como apóstolo inspirado, faz citações do "Livro de Enoc", com isso santificando-o inevitavelmente. (4)

                O "Livro de Enoc" acabou sendo aceito apenas pela Igreja Etíope, que conservou o seu texto original em gueês, a língua literária e litúrgica da Abissínia. Só recentemente encontrou-se, no deserto da Judéia, um exemplar, incompleto, do "Livro de Enoc, em aramaico. (5)

                A formação do cânone cristão neotestamentário foi mais atribulada. A primeira tentativa de estabelecer uma listagem dos livros que deveria compor o "Novo Testamento" foi a de Márcion, um rico cristão originário de Sinope, na Ásia Menor e transferido para Roma por volta do ano 140. Márcion acreditava que a tradição hebraica havia sido completamente suplantada pelo Cristianismo e, por isso, todos os textos cristãos que denunciassem a menor influência judaica deveriam ser postos à parte. Assim, ele rejeitou três dos quatro evangelhos hoje considerados canônicos, aceitando apenas o de Lucas, depurado de deformações e adendos que ele julgava terem sido introduzidos por elementos "judaizantes". Das epístolas de Paulo, ele só aceitou como legítima dez delas, rejeitando as três epístolas pastorais e a epístola aos hebreus.

                Márcion foi "excomungado" em 144, mas sua iniciativa chamou a atenção para a necessidade de se estabelecer um cânone oficial. Desenvolveu-se na Igreja o critério da primazia da autoria e dos ensinamentos dos apóstolos. Porém, a atribuição da autoria de determinados textos a esse ou àquele apóstolo foram, e ainda são, motivo de muitas controvérsias.

                Comecemos pelas epístolas paulinas. Já vimos que Márcion rejeitou a primeira e a segunda epístolas a Timóteo, bem como as epístolas a Tito e aos hebreus por não reconhecê-las como sendo de autoria de Paulo. A Igreja Católica, no entanto, incluiu-as em seu cânone. Hoje em dia, estudiosos parecem reconhecer que Márcion estava certo. Assim, o alemão Alfred Läpple afirma que a epístola aos hebreus foi escrita cerca do ano 80, e as epístolas a Timóteo e a Tito foram redigidas pelo ano 100, décadas após a morte de Paulo, ocorrida em 64 ou 67.

                Elaine Pagels vai mais longe: junto a I Timóteo, II Timóteo e Tito, ela também classifica as cartas aos Efésios, aos Colossenses e a segunda carta aos Tessalonicenses como pseudopaulinas. Um dos motivos de Pagels para a rejeição desas cartas é que elas enfatizam a exageram as opiniões "antifemininas" de Paulo: nelas, o apóstolo restringira a participação das mulheres na vida da Igreja (como, por exemplo, em I Tm II, 12), o que é totalmente contrário a doutrina cristã. De fato, elas estão em contradição com outras cartas em que Paulo prestigia, não só os homens, mas também as mulheres que trabalhavam ativamente pela causa do cristianismo - por exemplo, no capítulo XVI da "Carta aos Romanos", onde Paulo chega a fazer referência a uma apóstola chamada Júnia. (6) A aceitação dessas epístolas no cânone teria ocorrido pelo ano 200. (7) Realmente, a mais antiga coletânea das cartas de Paulo data de 200/220 (papiros P ⁴⁶ , encontrados cerca de 100 km ao sul de Cairo, em 1930) e contêm as mesmas que se acham em nossas bíblias. 

                O mais antigo cânone elaborado pela Igreja Romana, de que se tem notícia, é aquele registrado no manuscrito denominado "Cânone Muratoriano", por ter sido descoberto em 1740 por Ludovico Muratori, na Biblioteca Ambrosiana de Milão. Data de 180, aproximadamente (8) e nele encontramos informações interessantes. Por exemplo: esse cânone rejeita as duas epístolas que supostamente teriam sido escritas por Paulo às igrejas de Laodicéia e Alexandria (trata-se das epístolas perdidas), por considerá-las como tendo sido forjadas por seguidores de Márcion. Informa que a Igreja, naquela época, aceitava o livro deuterocanônico "Sabedoria", escrito segundo o cânone, por amigos do rei Salomão, em sua honra; hoje, esse livro ainda é considerado canônico pela Igreja Católica Apostólica Romana, mas os protestantes o rejeitam, como já vimos.

                Das epístolas católicas, parece que só aceitava três: a de Judas e duas das de João. É bom explicar que não sabemos qual foi a epístola de João, das três hoje existente em nossas bíblias, que não foi aceita pelo Cânone Muratoriano.

                Nós nos surpreendemos, ainda, ao saber que, naquela época, a Igreja aceitava dois Apocalipses: o de João, que temos em nossas bíblias, e outro, atribuído a Pedro; porém, o Cânone Muratoriano acrescenta que "alguns dos nossos não querem que sejam lidos na Igreja". (9)

                Sobre o livro intitulado "Pastor", escrito por um certo Hermas, enquanto seu irmão Pio era bispo de Roma (140-155), o Cânone Muratoriano informa que "é necessário que seja lido, mas não pode ser apresentado na igreja, ao povo, nem como profeta, porque seu trabalho já se encontrava completo; nem como apóstolo, tendo vindo nos fins dos tempos". (10) Temos aqui mais uma amostra de como eram obscuros os critérios utilizados naquela época para definir se um livro deveria ou não ser considerado canônico.

                O Cânone Muratoriano parece, também, inaugurar o primeiro "Índex" dos livros proibidos, quando rejeita, taxativamente, qualquer obra escrita por autores como o gnóstico Valentino (que residiu em Roma por volta de 140-160 d.C., tendo antes morado em Alexandria, no Egito, onde a seita gnóstica tinha numerosos adeptos), ou o fundador da Igreja Catafrígia, Basílides.

                Pela mesma época (isto é, por volta de 180 d.C.), o bispo de Lyon, Irineu (c. 130-c. 202), escreveu um livro intitulado "Contra as Heresias" onde se queixava de que os "hereges" estavam espalhando a idéia de que existiam outros evangelhos além dos quatro conhecidos. Irineu afirmava que os quatro evangelhos do "Novo Testamento" eram legítimos, simplesmente porque foram escritos pelos próprios discípulos de Jesus e seus seguidores - que teriam testemunhado, em pessoa, os acontecimentos que relataram.

                Por outro lado, é bom lembrar que os "hereges" também afirmavam que muitos dos seus escritos tinham origem apostólica (como seria o caso do "Evangelho de Tomé"). Irineu refutava essas afirmações dos "hereges", argumentando que seus escritos eram falsamente apostólicos. Porém, devemos raciocinar que, se por um lado, os hereges não poderiam provar a origem apostólica de seus escritos, do outro, também, o bispo Irineu e os cristãos ortodoxos em geral não podiam (e não podem, até hoje) provar a origem apostólica dos documentos considerados canônicos.

                A historiadora e teóloga americana Elaine Pagels, no que se refere à autoria dos evangelhos, conclui pelo seguintes: "Mas alguns estudiosos modernos da Bíblia refutam essa noção: hoje poucos acreditam que foram contemporâneos de Jesus que realmente redigiram os evangelhos do "Novo Testamento". Embora Irineu, argumentando serem os únicos realmente legítimos, insista que eles foram escritos pelos próprios seguidores de Jesus, não sabemos virtualmente nada sobre as pessoas que escreveram os evangelhos que chamamos de Mateus, Marcos, Lucas e João. Sabemos, apenas, que esses escritos são atribuídos a apóstolos (Mateus e João) ou a seguidores dos apóstolos (Marcos e Lucas)". (11)

                Não contente em ter atribuído origem apostólica aos evangelhos canônicos, Irineu ainda quis demonstrar porque eles tinham de ser em número de quatro: era porque o mundo tem apenas quatro partes, quatro são os ventos cardeais e ainda porque o profeta Ezequiel tivera uma visão em que lhe apareceram quatro seres. "Chama ele, a isso, demonstração", comentaria sarcástico, séculos depois, o filósofo Voltaire. (12) Não obstante, a Igreja Católica acreditou na associação feita por Irineu, entre os evangelhos e os seres vistos por Ezequiel. Assim, desde o Século IV, a iconografia católica faz representar Mateus por um anjo ou por um menino, Marcos por um leão, Lucas por um boi e João por uma águia.

                Ainda durante algum tempo, teólogos e eruditos cristãos continuaram a discutir a aceitação deste ou daquele escrito. Assim, o mais antigo historiador do Cristianismo, Eusébio de Cesaréia (c. 260 - c. 339), ainda não aceitava como canônicos a segunda epístola de Pedro, as epístolas de Tiago e Judas e as duas últimas de João. (13)

                Na verdade, o cânone cristão variou até mesmo segundo a área geográfica do Império Romano. Assim, enquanto as igrejas da parte oriental do Império Romano acolheram desde cedo as epístolas de Tiago, a segunda de Pedro e a Carta aos Hebreus, as da parte Ocidental só as aceitaram no final do século IV. (14) Por sua vez, as igrejas do Oriente tiveram dificuldades em aceitar o Apocalipse de João: um concílio local, reunido em Laodicéia, no ano 360, rejeitou-o.

                No Ocidente, as discussões terminaram em 397, com o Concílio de Cartago, que definiu o cânone tal como se apresenta hoje em nossas bíblias. Ainda assim, o Papa Gelásio (pontífice entre 492 e 496) achou por bem promulgar um catálogo dos livros que deveriam ser considerados canônicos. As Igrejas do Oriente, no entanto, não acataram essas decisões. O Apocalipse de João, por exemplo, só foi finalmente aceito pela Igreja Oriental durante o reinado de Justiniano (527-565), enquanto escritos rejeitados pela Igreja Ocidental continuaram a ser lidos no Oriente e até mesmo incluídos nas bíblias.
                Duas das mais antigas bíblias hoje existentes incluem escritos considerados não canônicos. Uma é aquela conhecida como Códice Sinaítico, assim chamada por te sido encontrada no Mosteiro Ortodoxo de Santa Catarina, no Monte Sinai, e remonta à segunda metade do Século IV da era cristã (350-400 d.C.)

                Além dos escritos do Novo Testamento que hoje conhecemos, o Códice Sinaítico inclui também a "Epístola de Barnabé" e o "Livro do Pastor", de Hermas. Outra, redigida no Egito em meados do Século V ou talvez no fim daquele século (450-500 d.C.) e denominada Códice Alexandrino, traz, junto aos livros canônicos, a "Epístola de Clemente Romano". (15) É significativo que estas bíblias sejam provenientes da antiga parte oriental do Império Romano. Foi provavelmente a resistência de várias igrejas e grupos heréticos que levou o Papa Gelásio a publicar um cânone dos livros que deveriam ser considerados sagrados, mesmo após o Concílio de Cartago já tê-lo definido, em 397 - não obstante, deve-se considerar que esse não foi um concílio ecumênico. (16)

                Em 692, um concílio reunido em Constantinopla, e não reconhecido por Roma, procurou estabelecer o cânone bíblico da Igreja Oriental, que hoje é praticamente o mesmo da Católica Romana.

                A Igreja da Etiópia, por sua vez, estabeleceu um cânone próprio, que inclui livros deuterocanônicos (como "Tobias" e "Judite") ou considerados, por outras igrejas, como "não inspirados" (como o "Pastor" de Hermas e o "Livro de Enoc"). (17)

Notas

01. Schiavo, José - Obra citada, p. 10 (Introdução)
02. Idem, Ibidem, p. 11 (Introdução)
03. Agostinho, Santo - "A Cidade de Deus", XV e XXIII, apud Roso de Luna, Mário - Obra citada, pp. 166 e 167.
04. Roso de Luna, Mário - Obra citada, p. 171.
05. Annequin, Guy - "As Civilizações do Mar Vermelho". Rio de Janeiro, Otto Pierre Editores, 1978, pp. 132 e 279.
06. Pagels, Elaine - "Os Evangelhos Gnósticos". pp. 90 e 92. Sobre a participação das Mulheres na vida da Igreja, nos primórdios, veja Antoniazzi, Alberto e Cristiano, Henrique - Obra citada, p. 16, onde os autores enfocam, inclusive, o caso de Júnia.
07. Pagels, Elaine - "Os Evangelhos Gnósticos". p. 48.
08. Läpple, Alfred - Obra citada, pp. 123 e 124
09. Apud Donini, Ambrósio - Obra citada, pp. 144.
10. Idem, Ibidem.
11. Pagels, Elaine - "Os Evangelhos Gnósticos". p. 48.
12. Voltaire - "Dicionário Filosófico". Rio de Janeiro, Tecnoprint, s/d, p. 32 (verbete "Apocalipse").
13. Donini, Ambrógio - Obra citada, p. 62
14. Hurbult, Jesse Lyman - Obra citada, p. 55, onde o autor fala das diferenças inicialmente existentes entre os cânones das Igrejas do Ocidente e do Oriente.
15. Läpple, Alfred - Obra citada, pp. 28 e 30.
16. Hermínio C. Miranda deixa entender, realmente, que o cânone teria sido definido - pelo menos no que concerne ao Novo Testamento - pelo Concílio de Cartago: "Quando hoje pensamos nos Evangelhos, temos em mente os documentos canônicos tradicionais, considerados de boa linhagem doutrinária pela Igreja, no Concílio de Cartago, em 397: os três sinóticos, o Evangelho de João, os Atos dos Apóstolos, as diversas epístolas e o Apocalipse de João" (Miranda, Hermínio C. - "O Evangelho de Tomé: Texto e Contexto", p. 20).
17 Annequin, Guy - Obra citada, p. 278.

Adendo: Todos os créditos do texto e das notas devem ser dados à Pinheiro Martins, "História da Formação do Novo Testamento", Edições CELD, 1993

                

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