quarta-feira, 12 de junho de 2013

A Formação do cânon do Novo Testamento

Na época em que foram escritos os 27 livros do Novo Testamento, eles ainda não eram “Escritura Sagrada”. A Escritura Sagrada para os autores do Novo Testamento era o Antigo Testamento. Quando eles introduzem citação como a fórmula “para que se cumprisse o que está escrito”, eles se referem exclusivamente ao Antigo Testamento. É verdade que o apóstolo Paulo lembra, ocasionalmente, palavras de Jesus (1 Ts 4.15; 1 Co 7.10; 9.14 e o relato de 1 Co 11.23 ss.); mas ele as toma da tradição oral e não dos escritos, pois os evangelhos ainda não existiam em seu tempo. Neste caso, emprega geralmente a fórmula da introdução “O Senhor diz”, e assim o fazem todos os autores cristãos até o começo do século II.

Somente em escritos redigidos por volta de 140/150, a Carta de Barnabé e a segunda Carta de Clemente, é citada uma palavra de Jesus na categoria de Escritura Sagrada (1 Bar 4.14 = Mt 22.14; 2 Clem 2.4 = Mt 9.13). Mais ou menos na mesma época, o termo “evangelho”, que até então assinalara a pregação da boa nova, começa a ser empregado no sentido de “livro” (em Justino Mártir, por volta de 150, por exemplo; mas este, dirigindo-se a gentios cultos, emprega paralelamente o termo literário “memórias dos apóstolos”, que, porém, é menos apropriado).

Em meados do século II, nossos quatro evangelhos ainda não eram os únicos que exerciam autoridade. Outros evangelhos, “apócrifos”, que em parte relatam lendas (especialmente sobre os períodos da vida de Jesus dos quais os evangelhos antigos não falavam), em parte especulações gnósticas, atribuídas, frequentemente, ao Cristo ressuscitado, já se tinham difundido, e seu número continuava crescendo. Estava na hora de represar essa maré. Pouco a pouco, nossos quatro evangelhos foram separados e revestidos de uma autoridade normativa antes dos outros escritos do Novo Testamento. No fim do século II, Irineu já tentou explicar porque não deve haver nem menos nem mais do que quatro evangelhos.

Quanto às epístolas de Paulo, vimos que já durante a vida do apóstolo e sob seu conselho (Cl 4.16), algumas entre elas foram permutadas entre as diferentes igrejas; é esta a origem da coleção ou do “corpus” das epístolas paulinas. A primeira coleção desse gênero  parece ter sido compilada em Corinto. Esta é a razão pela qual a mais antiga lista de livros canônicos, o cânon de Muratori, coloca por volta de 180 d.C. as cartas aos Coríntios à frente das epístolas paulinas. A primeira citação de uma passagem paulina (Ef 4.26), considerada como Escritura Sagrada, acontece em torno do ano 150, na carta de Policarpo 12.1. Por volta de 170 d.C., as primeiras coleções paulinas contam ora 10 epístolas (as do futuro cânon, menos as epístolas pastorais e a carta aos Hebreus), ora 13 (faltando somente a carta aos Hebreus).

Somente aos poucos, também outros escritos, os Atos dos Apóstolos, as epístolas católicas e o Apocalipse, alcançaram uma dignidade canônica.

De uma forma geral, o cânon do Novo Testamento não se formou, como poderia se supor, por adição, mas por eliminação. Ainda no início do século II, foram redigidos não somente evangelhos apócrifos e atos dos apóstolos, mas também um grande numero de outros escritos cristãos (como os escritos dos Pais Apostólicos). Estes, mesmo que não pretendessem remontar às origens, não tinham, em princípio, uma autoridade inferior àquela dos escritos que hoje fazem parte do Novo Testamento.

A elaboração do cânon do Novo Testamento foi, portanto, o fruto de um processo que, até a fixação final, estendeu-se por vários séculos. Mas o fato decisivo é o surgimento da ideia do cânon. Este momento importante aconteceu entre os anos de 140 e 150. Na época, a Igreja reconheceu que ela sozinha não podia mais controlar as tradições que pululavam e, então submeteu toda tradição a uma norma superior, à tradição apostólica, que, exposta em certos escritos, teria valor canônico.

Eis por que o caráter apostólico, atribuído, com ou sem razão, a um escrito, não deixou de influir sobre a escolha que foi feita. Em certos casos, para fazer entrar no cânon um livro que não tinha como autor um apóstolo, foi preciso estabelecer, posteriormente, uma relação entre o escrito e algum apóstolo. Pode-se dizer que o conceito de “cânon” resultou diretamente daquele de apóstolo. O apóstolo tem, na Igreja, uma função única, que não se repete mais: ele é testemunha ocular. Por conseguinte, acreditava-se que somente os escritos que tinham como autor um apóstolo ou discípulo de apóstolo poderiam garantir a pureza do testemunho cristão.

Mas não se deve se supor que o cânon se tenha formado em consequência de uma série de decisões inequívocas. Os livros admitidos mais tarde impuseram-se por si mesmos aos membros da Igreja; quando se compara, por exemplo, o conteúdo dos quatro evangelhos com o dos evangelhos apócrifos, só pode-se admirar o julgamento seguro dos primeiros cristãos daquele tempo. A teologia vê nisso a obra do Espírito Santo, que ao mesmo tempo era atuante naqueles escritos e nas comunidades que só os recebiam.

Antes de expor a ideia comum  dos 27 escritos, limitemo-nos a mencionar as grandes etapas da constituição do cânon. O primeiro cânon foi obra de Marcião, por volta de 150, que fez sua escolha a partir de critérios muito estreitos de sua teologia. Condenado como herético, Marcião, do qual já falamos, opunha radicalmente o Deus de amor e de graça, Pai de Jesus Cristo, ao Deus justo do Antigo Testamento. Não admitindo nenhuma continuidade entre os dois Testamentos, Marcião rejeitava em bloco o Antigo Testamento. Sendo Paulo, segundo essa teoria, o único apóstolo legitimo, um só evangelho podia ser admitido, o de Lucas, porta-voz de Paulo. Este cânon contém, pois, somente o Evangelho segundo Lucas e 10 epístolas paulinas (portanto, nem as cartas pastorais nem a Carta aos Hebreus).

Em reação contra essa redução excessiva e arbitrária, a Igreja estabeleceu seu cânon com quatro evangelhos e 14 epístolas paulinas (as cartas pastorais e a Carta aos Hebreus entraram finalmente como tais), aos quais se juntaram aos Atos, as epístolas católicas e o Apocalipse.

A primeira lista que possuímos e que representa um estágio já evoluído do cânon data, sem dúvida, da segunda metade do século II. Foi descoberto pelo bibliotecário Muratori (falecido em 1750) na Biblioteca Ambrosiana de Milão. Conservada em latim, ela reconhece como canônicos nossos quatro evangelhos, 13 epístolas paulinas (portanto não a Carta aos Hebreus) e os Atos dos Apóstolos.  A terceira parte do cânon estava, naquele tempo, ainda longe de ser encerrada: somente uma carta abrange a Carta de Judas e duas epístolas joaninas, mas nenhuma menção é feita das duas Cartas de Pedro, da de Tiago nem da terceira Carta de João. Ao invés disso, o cânon de Muratori admite dois apocalipses: o de João e o de Pedro; este último – é verdade – não sem uma certa reserva.

Na sequencia, as listas canônicas fornecidas pelos Pais da Igreja atestam ainda muita incerteza em relação a essa terceira parte. É feita uma distinção entre os escritos sobre os quais se estabeleceu um acordo (os quatro evangelhos e a maior parte das epístolas paulinas), aqueles cujo valor canônico é objeto de discussão e aqueles que são rejeitados por todos.

Por volta de 200, o cânon do Novo Testamento já se aproximava muito do nosso (o cânon da Igreja da Síria, que conta somente 22 livros, tem sua história particular). Entretanto as discussões continuaram ainda muito tempo sobre a canonicidade da Carta aos Hebreus, contestada pela Igreja do Ocidente, porque esta apreciava pouco seu caráter especulativo, e sobre o Apocalipse, que, ao contrário, a Igreja do Oriente tinha dificuldades para admitir por causa de suas concepções julgadas pouco espirituais.

Essas discussões foram concluídas, grosso modo, sem ter alcançado um fim definitivo, no Oriente (com exceção da Síria) e no Ocidente no final do século IV. As datas decisivas são, para o Oriente, a 39ª carta pascal de Atanásio em 367 e, para o Ocidente, o Sínodo de Roma de 382 e os concílios africanos de Hipona (393) e de Cartago (397).

Extraído do livro “A Formação do Novo Testamento”, por Oscar Cullmann. Ed. Sinodal, 2012, pag. 89-92

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