Na época em que foram escritos os
27 livros do Novo Testamento, eles ainda não eram “Escritura Sagrada”. A
Escritura Sagrada para os autores do Novo Testamento era o Antigo Testamento. Quando eles introduzem
citação como a fórmula “para que se cumprisse o que está escrito”, eles se
referem exclusivamente ao Antigo Testamento. É verdade que o apóstolo Paulo
lembra, ocasionalmente, palavras de Jesus (1 Ts 4.15; 1 Co 7.10; 9.14 e o
relato de 1 Co 11.23 ss.); mas ele as toma da tradição oral e não dos escritos,
pois os evangelhos ainda não existiam em seu tempo. Neste caso, emprega
geralmente a fórmula da introdução “O Senhor diz”, e assim o fazem todos
os autores cristãos até o começo do século II.
Somente em escritos redigidos por
volta de 140/150, a Carta de Barnabé e a segunda Carta de Clemente, é citada
uma palavra de Jesus na categoria de Escritura Sagrada (1 Bar 4.14 = Mt 22.14;
2 Clem 2.4 = Mt 9.13). Mais ou menos na mesma época, o termo “evangelho”, que
até então assinalara a pregação da boa nova, começa a ser empregado no sentido
de “livro” (em Justino Mártir, por volta de 150, por exemplo; mas este,
dirigindo-se a gentios cultos, emprega paralelamente o termo literário
“memórias dos apóstolos”, que, porém, é menos apropriado).
Em meados do século II, nossos
quatro evangelhos ainda não eram os únicos que exerciam autoridade. Outros
evangelhos, “apócrifos”, que em parte relatam lendas (especialmente sobre os
períodos da vida de Jesus dos quais os evangelhos antigos não falavam), em
parte especulações gnósticas, atribuídas, frequentemente, ao Cristo
ressuscitado, já se tinham difundido, e seu número continuava crescendo. Estava
na hora de represar essa maré. Pouco a pouco, nossos quatro evangelhos foram
separados e revestidos de uma autoridade normativa antes dos outros escritos do
Novo Testamento. No fim do século II, Irineu já tentou explicar porque não deve
haver nem menos nem mais do que quatro evangelhos.
Quanto às epístolas de Paulo,
vimos que já durante a vida do apóstolo e sob seu conselho (Cl 4.16), algumas
entre elas foram permutadas entre as diferentes igrejas; é esta a origem da coleção
ou do “corpus” das epístolas paulinas. A primeira coleção desse gênero parece ter sido compilada em Corinto. Esta é a
razão pela qual a mais antiga lista de livros canônicos, o cânon de Muratori,
coloca por volta de 180 d.C. as cartas aos Coríntios à frente das epístolas
paulinas. A primeira citação de uma passagem paulina (Ef 4.26), considerada
como Escritura Sagrada, acontece em torno do ano 150, na carta de Policarpo
12.1. Por volta de 170 d.C., as primeiras coleções paulinas contam ora 10
epístolas (as do futuro cânon, menos as epístolas pastorais e a carta aos
Hebreus), ora 13 (faltando somente a carta aos Hebreus).
Somente aos poucos, também outros
escritos, os Atos dos Apóstolos, as epístolas católicas e o Apocalipse,
alcançaram uma dignidade canônica.
De uma forma geral, o cânon do
Novo Testamento não se formou, como poderia se supor, por adição, mas por eliminação.
Ainda no início do século II, foram redigidos não somente evangelhos apócrifos
e atos dos apóstolos, mas também um grande numero de outros escritos cristãos
(como os escritos dos Pais Apostólicos). Estes, mesmo que não pretendessem
remontar às origens, não tinham, em princípio, uma autoridade inferior àquela
dos escritos que hoje fazem parte do Novo Testamento.
A elaboração do cânon do Novo
Testamento foi, portanto, o fruto de um processo que, até a fixação final,
estendeu-se por vários séculos. Mas o fato decisivo é o surgimento da ideia
do cânon. Este momento importante aconteceu entre os anos de 140 e 150.
Na época, a Igreja reconheceu que ela sozinha não podia mais controlar as tradições
que pululavam e, então submeteu toda tradição a uma norma superior, à tradição apostólica,
que, exposta em certos escritos, teria valor canônico.
Eis por que o caráter apostólico,
atribuído, com ou sem razão, a um escrito, não deixou de influir sobre a
escolha que foi feita. Em certos casos, para fazer entrar no cânon um livro que
não tinha como autor um apóstolo, foi preciso estabelecer, posteriormente, uma
relação entre o escrito e algum apóstolo. Pode-se dizer que o conceito de “cânon”
resultou diretamente daquele de apóstolo. O apóstolo tem, na Igreja, uma função
única, que não se repete mais: ele é testemunha ocular. Por conseguinte,
acreditava-se que somente os escritos que tinham como autor um apóstolo ou
discípulo de apóstolo poderiam garantir a pureza do testemunho cristão.
Mas não se deve se supor que o cânon
se tenha formado em consequência de uma série de decisões inequívocas. Os livros
admitidos mais tarde impuseram-se por si mesmos aos
membros da Igreja; quando se compara, por exemplo, o conteúdo dos quatro
evangelhos com o dos evangelhos apócrifos, só pode-se admirar o julgamento
seguro dos primeiros cristãos daquele tempo. A teologia vê nisso a obra do
Espírito Santo, que ao mesmo tempo era atuante naqueles escritos e nas
comunidades que só os recebiam.
Antes de expor a ideia comum dos 27 escritos, limitemo-nos a mencionar as
grandes etapas da constituição do cânon. O primeiro cânon foi obra de Marcião,
por volta de 150, que fez sua escolha a partir de critérios muito estreitos de
sua teologia. Condenado como herético, Marcião, do qual já falamos, opunha
radicalmente o Deus de amor e de graça, Pai de Jesus Cristo, ao Deus justo do
Antigo Testamento. Não admitindo nenhuma continuidade entre os dois
Testamentos, Marcião rejeitava em bloco o Antigo Testamento. Sendo Paulo,
segundo essa teoria, o único apóstolo legitimo, um só evangelho podia ser
admitido, o de Lucas, porta-voz de Paulo. Este cânon contém, pois, somente o
Evangelho segundo Lucas e 10 epístolas paulinas (portanto, nem as cartas
pastorais nem a Carta aos Hebreus).
Em reação contra essa redução
excessiva e arbitrária, a Igreja estabeleceu seu cânon com quatro evangelhos e
14 epístolas paulinas (as cartas pastorais e a Carta aos Hebreus entraram
finalmente como tais), aos quais se juntaram aos Atos, as epístolas católicas e
o Apocalipse.
A primeira lista que possuímos e
que representa um estágio já evoluído do cânon data, sem dúvida, da segunda
metade do século II. Foi descoberto pelo bibliotecário Muratori (falecido em
1750) na Biblioteca Ambrosiana de Milão. Conservada em latim, ela reconhece
como canônicos nossos quatro evangelhos, 13 epístolas paulinas (portanto não a
Carta aos Hebreus) e os Atos dos Apóstolos. A terceira parte do cânon estava, naquele
tempo, ainda longe de ser encerrada: somente uma carta abrange a Carta de Judas
e duas epístolas joaninas, mas nenhuma menção é feita das duas Cartas de Pedro,
da de Tiago nem da terceira Carta de João. Ao invés disso, o cânon de Muratori
admite dois apocalipses: o de João e o de Pedro; este último – é verdade – não sem
uma certa reserva.
Na sequencia, as listas canônicas
fornecidas pelos Pais da Igreja atestam ainda muita incerteza em relação a essa
terceira parte. É feita uma distinção entre os escritos sobre os quais se
estabeleceu um acordo (os quatro evangelhos e a maior parte das epístolas
paulinas), aqueles cujo valor canônico é objeto de discussão e aqueles que são
rejeitados por todos.
Por volta de 200, o cânon do Novo
Testamento já se aproximava muito do nosso (o cânon da Igreja da Síria, que
conta somente 22 livros, tem sua história particular). Entretanto as discussões
continuaram ainda muito tempo sobre a canonicidade da Carta aos Hebreus,
contestada pela Igreja do Ocidente, porque esta apreciava pouco seu caráter
especulativo, e sobre o Apocalipse, que, ao contrário, a Igreja do Oriente
tinha dificuldades para admitir por causa de suas concepções julgadas pouco
espirituais.
Essas discussões foram
concluídas, grosso modo, sem ter
alcançado um fim definitivo, no Oriente (com exceção da Síria) e no Ocidente no
final do século IV. As datas decisivas são, para o Oriente, a 39ª carta pascal
de Atanásio em 367 e, para o Ocidente, o Sínodo de Roma de 382 e os concílios
africanos de Hipona (393) e de Cartago (397).
Extraído do livro “A Formação do
Novo Testamento”, por Oscar Cullmann. Ed. Sinodal, 2012, pag. 89-92
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